A narrativa das alterações climáticas cria uma comunidade internacional de desastre, homogeneizando e ocultando os efeitos de longo prazo do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. A mesma insere-se também nas estratégias hegemónicas e performativas de produção de um mundo inseguro, que permitem a produção de um outro exótico, perigoso e distante.
De uma primeira abordagem clássica, baseada no risco e nos peritos, passou-se, com a criação pelas Nações Unidas da Década Internacional para a Redução dos Desastres, para o discurso da resiliência e do papel das comunidades. Se o conceito de risco é já marcado pelo seu ocidentalocentrismo, esquecendo que no Sul Global muitos dos quotidianos dos indivíduos, das famílias e das comunidades são de sobrevivência e de precariedade, terá o conceito de resiliência alguma aplicabilidade? Servirá o mesmo que interesses?
A atenção política à redução da vulnerabilidade e ao incremento da resiliência, instigadora de inúmeras investigações e propostas de análise teóricas e empíricas, tem centrado o debate mais na redução dos custos e na mensuração técnica e operacional da vulnerabilidade do que nas questões de cidadania, qualidade de vida e segurança estrutural das populações.
A própria transição de um paradigma da vulnerabilidade para um paradigma assente na resiliência obriga a perguntar se o discurso subjacente não implica, na verdade, uma transferência de responsabilidades das entidades internacionais e governamentais para as comunidades e os cidadãos. O discurso da resiliência recai sobre as populações com fracos recursos para tornarem os riscos seguráveis.
Contudo, algumas catástrofes no Norte Global revelaram como essa exoticização assente em critérios raciais, de classe e de gestão biopolítica e geo-económica das populações, também poderá funcionar em pleno em certos locais geo-históricos do centro hegemónico.
Esta universalização do discurso da resiliência e, mais importante, de políticas públicas orientadas para a prevenção e mitigação dos desastres com base no conceito de resiliência, induz a produção de cidadanias invisíveis que emergem aquando da ocorrência de catástrofes. A cidadania invisível reporta-se a todos aqueles que, apesar de integrados biopoliticamente nas estatísticas e nas políticas da população, não contam, não são ouvidos, não interessam ao projeto do Estado ou não adquirem grandeza ou projeção mediática.
Os ciclones Idai e Kenneth que atingiram Moçambique em março e abril colocaram Moçambique na esfera da comunidade internacional de desastre. O número de mortos e a destruição causados pelo Idai, a própria força devastadora do ciclone, projetaram mediaticamente Moçambique na cena internacional e espoletaram toda uma rede de solidariedade, mobilizando também as entidades internacionais responsáveis pelo apoio humanitário.
Apesar dos alertas e da previsibilidade da trajetória e do impacto do Idai, as autoridades moçambicanas demoraram a atuar e deixaram as populações literalmente à mercê da intempérie. Isto apesar de Moçambique ter um dos melhores serviços de previsão e gestão de catástrofes, o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades, reputado pela qualidade dos seus estudos e dos seus técnicos e reconhecido internacionalmente pelo seu conhecimento e forma de atuação em situações de cheia.
As consequências do ciclone Kenneth foram menores a nível de perda de vidas humanas, apesar da força e da intensidade do mesmo, devido às lições aprendidas com o Idai. As autoridades aqui atuaram proativamente e procederam à evacuação de milhares de pessoas.
Numa lógica pós-colonial assinalável, cabe referir o argumento de muitas ONGs moçambicanas pela necessidade de perdão da dívida contraída por Moçambique, contrariando, na sequência do Idai e do Kenneth, a lógica inelutável do capitalismo de desastre e da sua vampirização do Sul Global, em que toda a catástrofe é uma oportunidade de negócio (do apoio humanitário à reconstrução).
Na lógica da reconstrução da Beira emerge também a discussão sobre a possibilidade de relocalização das populações e a fundação de uma nova cidade. O caderno P2 do jornal Público de 28 de abril de 2019 trazia uma excelente reportagem sobre o tema, assinada por António Rodrigues e intitulada “Beira. “A cidade que está no sítio errado”. O texto tem o condão de reportar especialistas moçambicanos, profundos conhecedores do terreno e das realidades locais. E de trazer argumentos matizados, entre os que apoiam a deslocalização e a reconstrução da cidade da Beira em lugar diferente, como Ungulani Ba Ka Khosa e Carlos Serra, e os que chamam a atenção para a tessitura das relações estabelecidas e da complexidade da questão, como João Paulo Borges, Luís Lage e José Forjaz.
A solução caberá às moçambicanas e aos moçambicanos, mas a exepriência do Katrina mostra os elevados custos humanos e de cidadania de qualquer lógica de deslocalização em massa de populações. E, em vez da ativação de estratégicas radicais, porque não a mobilização de uma ecologia de saberes e de temporalidades que permita a convivência e a adaptação aos novos condicionalismos relacionados com a subida do nível do mar e do período mais curto de recorrência de fenómenos extremos como os ciclones?
Que se poderá aprender com os conhecimentos locais, no desafio de ficar e pugnar pela qualidade de vida, segurança e plena cidadania de todos e todas?
Moçambique tem as instituições com conhecimento suficiente para uma relação adaptativa aos desafios da natureza, assente nas redes de solidariedade e de conhecimento locais e na perseverança do saber vencer o destino que lhe querem atribuir, fora da canga do capitalismo de desastre ou do urbanismo de exclusão.
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José Manuel Mendes é doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde exerce as funções de Professor Associado com Agregação. Investigador do Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas áreas do risco e da vulnerabilidade social, planeamento, políticas públicas e cidadania. É coordenador do Observatório do Risco – OSIRIS, sediado no Centro de Estudos Sociais, e Diretor da Revista Crítica de Ciências Sociais.
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Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.