Existe algo muito singular no Covid19. Coloca em quarentena quem está com sintomas, em tratamento quem está infectado, força ao isolamento quem tiver tido contacto com pessoas infectadas e distanciamento social a quem não tem sintoma algum. É um momento muito particular de crise de saúde global. Pessoas doentes, com sintomas e sem sintomas atravessam similares sensações: o confinamento. O poder disciplinar da biomedicina nunca esteve tão potente. A biopolítica nunca se viu dando tão certo.
Uma lição que sobressai de imediato vem a partir do fechamento das fronteiras nacionais trazendo realidades perversas mas com utilidade, principalmente para os governantes africanos que pouco investiram e investem na saúde dos seus próprios países. Tiveram sempre a garantia de que, em caso doença, teriam tratamento no estrangeiro, nos países que investiram nos seus sistemas de saúde. O Covid-19 força o tratamento local. Os hospitais do ocidente estão sobrecarregados com seus próprios cidadãos.
Seria este um momento oportuno para que decisores políticos africanos, moçambicanos, que estão também sendo assolados, provassem do próprio fel. Só que não.
E aqui precisamos desmistificar a ilusória democratização da doença. O “estamos todos no mesmo barco” é verdadeiro mas não deixam de existir passageiros e tripulantes. Esta disposição muda tudo em termos de possibilidades de controlo do barco e dos danos que podem advir. Como bem sabemos, as desigualdades acontecem entre países, regiões e dentro dos próprios países. Para um país de abismos como o nosso, fica muito claro que as consequências não serão tão partilhadas. Embora as marcas possam não escapar a ninguém, as drásticas consequências pesarão na vida dos pobres.
As pessoas pobres, privadas de serviços de saúde, de renda que até limita o distanciamento social, expostas a trabalhos precários, saneamento do meio negligenciado, residentes em regiões com péssimo ordenamento territorial serão tragicamente afectadas. Não estarão no mesmo nível da classe média, alta e política urbana, com condições mínimas para pagar por si um plano de saúde, ou que já possui planos de saúde privados, que tem as possibilidades do “home office” sem consequências nas suas contas correntes, com orçamento para fazer compras que suportem 1, 2 e mais meses. As classes pobres viverão um trágico dilema: “se pára, o bicho come, se corre, o bicho pega”.
Apesar do ônus maior recair nos grupos mais vulneráveis, de uma coisa estou certo: não há sono possível do assimilado enquanto o indígena estiver perturbadamente acordado. A elite política não deixará de sentir as consequências de anos de precarização das vidas das pessoas. Como bem apontou o geógrafo Josué de Castro no seu livro Geografia da fome, metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come. Terá sossego a nossa elite num país sendo assolado por esta pandemia?
Definitivamente há que dizer que os anos de desmonte em saúde que são a marca de sucessivos governos de Moçambique, desde pelo menos 1977 com a reintrodução das clínicas privadas, vão agora ao julgamento. A sentença é previsível e não agradável. A opção neoliberal foi e continuará sendo um erro para as nossas vidas. A sucatização e precarização dos nossos serviços públicos de saúde, que agudizou-se a partir de 2015, mostrará de forma evidente que este campo não é assessório de governação. A saúde é pública e não privada. Pena que precisamos da doença para nos lembrar. Os preços indecentes da CliniCare, dos 75,000.00 e 350,000.00 meticais para cuidado das pessoas doentes, são apenas uma amostra do que nos vem. Fica bastante patente a visão das clínicas no processo saúde doença: gerar lucro. O escape só pode aparecer caso o Estado decida tomar para si o controle das clínicas privadas (nacionalização) como sugere o Boaventura Mondlane, ou então, opte por impor uma moral não característica destes negociantes de saúde, ou ainda buscar comparticipação.
Muitos de nós estamos cientes dos cortes que os sectores da saúde e da educação vêm sofrendo, pelo menos, nos últimos 15 anos. As armas tiveram mais espaços que a construção, apetrechamento dos hospitais, assim como o investimento nos profissionais. Enquanto o exército via o seu salário e privilégios crescendo de forma exponencial, os profissionais de saúde foram subjugados a trabalhos precários, faltando até insumos básicos, como luvas e máscaras. Os incentivos e tantos subsídios que estimulavam a estes quase prolongadores da vida, também foram drasticamente cortados, atraindo mais a saída destes para as ONGs e clínicas privadas ou no mínimo dividirem o seu tempo entre o público e o privado. A mesma precarização não escapou aos educadores, pesquisadores que se não buscam recursos externos, não tem a nível da universidade orçamentos significativos para a pesquisa.
Ainda no processo de desmontes no sector da saúde, sob a máscara de qualidade, tivemos uma Ordem dos Médicos que passou de certa forma a desacreditar nas intituições que levam cerca de 6 anos formando os médicos, e acreditou no seu teste de algumas horas para validar a competência destes profissionais. Estamos nesta crise visível com um exército de jovens formados em medicina mas que não podem contribuir por não serem médicos.
A minha esperança é de que este momento sirva para reflexões profundas, que incluem o valor que politicamente dá-se aos cidadãos, os investimentos feitos em saúde e educação destes. Lembro-me do Leonardo Boff, filósofo e teólogo brasileiro ao dizer que “um país que não investe na saúde e na educação, está fadado a ter pessoas analfabetas e doentes”. Com pessoas analfabetas e doentes, este país está fadado a todos os tipos de fracassos, inclusive a elevação de casos evitáveis de propagação do vírus.
Espero que depois desta crise as pessoas sejam colocadas em primeiro lugar, tal como considerou o economista Amartya Sem. Apesar das destruições e rastos que tudo isto poderá deixar, iremos nos levantar. Só que diferente do Fénix que levantou-se das cinzas, temo que a gente levante-se com as cinzas, pior ainda, em cinzas.
* Edgar Bernardo é Membro do Comité Editorial d´Alternactiva. Coodenador da Men Engage Africa para área da Juventude em Moçambique; Coordenador Provincial da Rede Hopem, Nampula.