Alternactiva

Uma camponesa idosa na sua machamba. Cuamba, 2015 | Mário Macilau

Segundo o Global Agewatch Index, Moçambique é o terceiro pior país para envelhecer, depois do Malawi e o Afeganistão[i]. Apesar de existir uma lei sobre a proteção dos direitos da pessoa idosa (Lei nº 3-2014), os idosos são tratados como obsoletos pelo Estado, pelo sector privado e até pelas suas próprias famílias.

As pessoas idosas em Moçambique são absorvidos por uma tripla desqualificação. A primeira e a mais directa é a desqualificação biológica (inutilidade biológica), que culmina deveras vezes com a desqualificação simbólica (inutilidade representacional). A segunda tem que ver com a desqualificação social que se manifesta pelo isolamento radical à que estes são submetidos. A terceira e a última é a que consiste na desqualificação biopolítica e publica que consiste no abandono que o Estado lhes reserva. Esta tripla desqualificação leva, como não poderia ser diferente, ao apagamento dos velhos enquanto entes capazes de Ser. É à partir disso que eles enfrentam várias formas de violência, a física, a psicológica e a simbólico-material. Para além destas três formas de violência, estes são objeto de maus-tratos, de abandono, de falsas acusações de feiticeira, e até de morte.

As leis de proteção da pessoa idosa definem a família como a base da sociedade. Porém, a rede alargada de apoio familiar encontra-se hoje cada vez mais fragmentada—o que pode ser explicada por razões variegadas. O desemprego, a pobreza e a redução de remessas; a intensificação da migração, incluindo de mulheres, para as cidades; a propagação do HIV e SIDA; e a nuclearização de família, são alguns dos factores que têm contribuído para o desenlace da rede familiar.

Num contexto de profundas mudanças na estrutura social, familiar e cultural, o Estado tem uma responsabilidade cada vez maior perante as nossas chamadas “bibliotecas”. A segurança social é um dos instrumentos ao seu dispor para responder aos problemas da velhice enquanto problema eminentemente social e estatal. A segurança social compensa a pessoa idosa pela perda de produtividade e a redução de remuneração com a diminuição da sua capacidade física devido ao envelhecimento. A Recomendação 202 da Organização Internacional do Trabalho, recomenda que todos os países estabeleçam garantias mínimas de segurança de rendimento para as pessoas idosas[ii].

Na última década houve uma consolidação do quadro legal do sistema de segurança social, um aumento progressivo das dotações orçamentais para a segurança social básica, uma expansão numérica e geográfica da sua cobertura, e um incremento no valor das transferências monetárias. Porém, a rede de segurança social permanece fraca, ineficiente e sem efeitos estruturais na vida daqueles que beneficiam. Existem hoje, 1.25 milhões de pessoas com 60 anos ou mais –ou seja, 4.5% da população[iii]–metade das quais não têm acesso a uma pensão por velhice– quer através da segurança social obrigatória, quer através da segurança social básica.

 Figura 1: Projeções de cobertura do sistema contributivo e não-contributivo, 2019 e 2024[iv]

Por um lado, a maioria das pessoas idosas nunca tiveram a oportunidade de contribuir para o Instituto Nacional de Previdência Social ou o Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), por um período suficientemente longo de modo a poderem usufruir de uma pensão por velhice. Atualmente, menos 15% da população economicamente activa são trabalhadores assalariados na economia formal, e o grosso, sobrevive de uma multiplicidade de atividades informais. Além disso existem indícios de evasão por parte das entidades empregadoras, e aproximadamente metade dos trabalhadores assalariados no sector privado não estão inscritos no INSS.

Figura 2: A população economicamente ativa, segundo o processo laboral, 2019

A proposta da Estratégia Nacional de Segurança Social Obrigatória (ENSSO) 2019-2024 visa reforçar a fiscalização da obrigatoriedade para trabalhadores por conta de outrem, e estender a cobertura aos trabalhadores por conta própria[v]. O Decreto n.º 14/2015 fixa uma taxa de contribuição de 7% do rendimento mensal declarado, que deve ser pelo menos igual ao salário mínimo, paga na íntegra pelo trabalhador por conta própria. Porém, considerando que 80% da população moçambicana tem um consumo mensal per capita inferior ao salário mínimo mais baixo, o grosso dos trabalhadores por conta própria simplesmente não têm a capacidade contributiva. É nestas circunstâncias que o Estado deve procurar formular dispositivos que possam reduzir as incertezas de contribuição desses sectores, ajustando os métodos atualmente utilizados para uma melhor integração destes últimos na esfera da segurança social.

Entretanto, a Estratégia Nacional de Segurança Social Básica (ENSSB) 2016-2024, visa expandir a cobertura do subsistema não-contributivo a mais de um milhão de pessoas idosas até 2024[vi], através do Programa Subsídio Social Básico (PSSB). Serão elegíveis homens e mulheres acima dos 60 anos, que vivem num agregado familiar sem capacidade para o trabalho, num local onde o programa está a ser implementado a pelo menos 6 meses, e que foram identificados pela comunidade e verificados pelos técnicos do INAS como sendo “pobre”. Atualmente, o valor da transferência depende do tamanho do agregado familiar, e varia entre MT 540 para um agregado de uma pessoa e MT 1000 para um agregado de cinco pessoas.”

Embora representem avanços significativos, estas medidas, mesmo se implementadas, não garantem uma cobertura universal e muito menos a redução da tripla desqualificação material à que nos referimos supra. Como mostra a Figura 1, 15% das pessoas idosas continuarão sem qualquer acesso a segurança de rendimento. Uma opção rumo a cobertura universal para a pessoa idosa é uma focalização burocrática, através da harmonização dos sistemas de gestão de informação do Instituto Nacional de Ação Social, o Instituto Nacional de Segurança Social, o Instituto Nacional de Previdência Social e o Fundo de Pensões do Banco de Moçambique. Esta opção foi já proposta num documento publicado recentemente pela Organização Internacional do Trabalho.

Uma abordagem burocrática diminuiria o custo de identificação e seleção dos beneficiários, reduziria os erros de exclusão e inclusão, e garantiria o direito a proteção social na terceira idade. Dada a fraca diferenciação de consumo nos primeiro três quintis da população, a natureza dinâmica da pobreza, e a incapacidade de verificar o nível de rendimento do agregado familiar num contexto de informalidade, uma focalização com base em parâmetros socioeconómicos tem um elevado risco de erros de inclusão e exclusão (Figura 3); enquanto uma focalização burocrática não.

 Figura 3: Consumo mensal per capita (em MZN, por quintil, 2014/15) [vii]

Porém, para que a cobertura seja efetiva, é essencial que o valor da transferência seja adequado, ou melhor conforme a realidade do custo material de vida em Moçambique. A ENSSB 2016-2024 prevê a definição de um mecanismo sistematizado de revisão anual do valor, através da sua indexação à inflação. Em 2018, na véspera das eleições autárquicas, foi aprovado o aumento do valor mínimo do PSSB. Tomando em conta a inflação como o resultado da “Crise de Ematum”, o valor da transferência hoje, deveria ser igual a MT 840, ou seja, 1% do PIB.

Porém, para que a cobertura seja efetiva, é essencial que o valor da transferência seja adequado, ou melhor conforme a realidade do custo material de vida em Moçambique. A ENSSB 2016-2024 prevê a definição de um mecanismo sistematizado de revisão anual do valor, através da sua indexação à inflação. Em 2018, na véspera das eleições autárquicas, foi aprovado o aumento do valor mínimo do PSSB. Tomando em conta a inflação como o resultado da “Crise de Ematum”, o valor da transferência hoje, deveria ser igual a MT 840, ou seja, 1% do PIB.

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[i] Helpage, “Global AgeWatch Index 2015: Insight Report.”

[ii] ILO, “Recommendation R202 – Concerning National Floors of Social Protection, 2012 (No. 202).”

[iii] RdM, “Lei No 3/2014 Sobre a Protecção Dos Direitos Da Pessoa Idosa Em Moçambique.”

[iv] Castel-Branco and Vicente, “Resumo de Política: Rumo a Uma Segurança Social Universal Para a Pessoa Idosa Em Moçambique.”

[v] ILO, “ENSSO 2019-2024: PROJETO TRABALHADORES POR CONTA DE OUTREM.”

[vi] RdM, “Estrategia Nacional de Seguranca Social Basica 2016-2024: Aprovada Na 5a Sessao Ordinaria Do Conselho de Ministros.”

[vii] INE, “Relatório Final Do Inquérito Ao Orçamento Familiar- IOF 2014/15.”

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* Ruth Castel-Branco é doutoranda no Departamento de Sociologia da Universidade de Witwatersrand, e associada ao Centro Internacional de Desenvolvimento e Trabalho Digno. É membro do Comité Editorial d´Alternactiva.