Admitindo que o conceito de função da personagem refere-se à trajectória (sequência de eventos singulares e interdependentes) de um determinado agente no seio de uma narrativa e que esta só pode ser restituída a partir da soma das informações facultadas sobre a sua identidade e as suas atitudes (na narrativa e não fora dela), percebe-se que em “Ualalapi” e “Choriro” estamos perante um recorte histórico dos contactos entre povos por via da invasão.
Este recorte histórico que não se quer questionador dos factos históricos em si, mas sim, do discurso histórico que foi sendo construído em torno da colonização, como um fenómeno histórico-humano e as construções ideológicas que daí advieram, tanto do ponto de vista do colonizador assim como do colonizado, principalmente, e que muitas vezes norteiam a postura que se tem, não para com a história, e sim, com as relações entre os descendentes de “ex-colonizados” e “ex-colonizadores”.
Ngungunhane e Nhabezi (personagens principais de Ualalapi e Choriro, respectivamente) estabelecem o fio condutor que norteia estas narrativas, tornando possível aceder ao exercício crítico que o autor empreende no discurso pós-colonial[1] que está nas entrelinhas destas obras.
Se por um lado temos um invasor Nguni, africano, negro, opressor e esclavagista que entra em contacto com o povo Tsonga e empreende sobre ele todos os males de que a espécie humana é capaz, por outro lado temos um invasor português, branco, avesso a qualquer prática de opressão e esclavagismo que entra em contacto com o povo do Vale do Zambeze que já era dotado de uma civilização bem estabelecida e com uma cosmovisão que ele próprio assimilara e desejara não se desvincular dela mesmo após a morte.
Independentemente da verdade ou falsidade histórica dos factos aqui descritos (que é um dilema que está aquém da ficcionalidade literária que em si não está avessa da verosimilhança) há neste discurso uma postura crítica caracterizada por um ecletismo típico do pensamento pós-colonial e atípico na literatura actual tal como ilustra Derek Walcot (1995: 371) apud LEITE (2003: 16) ao afirmar que
“no Novo Mundo o servilismo à musa da história produziu uma literatura de recriminação e de desespero, uma literatura de revolta escrita pelos descendentes dos escravos ou uma literatura de remorso escrita pelos descendentes dos senhores”.
Esta primeira postura descrita por Walcot não se esgota no âmbito literário, perpassa todos os contextos que intervêm na sociedade e é dominada por discursos que tencionam legitimar uma falsa superioridade moral por parte dos descendentes de escravos abraçando um pensamento conservador que se quer aliar a uma suposta verdade histórica e interpreta a colonização e, sobretudo, a violência que dela advém como uma característica histórica que não existia antes da penetração mercantil europeia, como se a colonização e a violência fossem heranças dos europeus nos povos indígenas que viviam em perfeita harmonia e passividade.
É nesta linha de ideias que Leandro Carnal em “O ódio no Brasil” afirma que
“é verdade que a presença portuguesa é de uma violência e um genocídio impressionantes (…) mas não se deve construir em oposição a esta violência a ideia de aqui habitavam indígenas que cantavam poemas árcades e andavam para lá e para cá em felicidade absoluta”.[2]
Segundo o autor, esta é uma fantasia construída por Montaigne quando escreve o seu ensaio sobre os canibais e também por alguns pensadores contemporâneos e antropólogos, especialmente os não críticos.
É esta a visão que norteia vários discursos na actualidade e que está por detrás da concessão do grau de herói nacional a invasores que por serem negros e pela sua oposição à penetração mercantil (seja por que razões for) negligencia-se o carácter cruel antes desta penetração.
Por outro lado, existe uma postura não só de remorso como postula Walcot, mas também de contentamento por uma suposta solidariedade prestada pelos invasores europeus, no sentido em que, historicamente, os ex-colonizados devem a civilização que têm aos ex-colonizadores, como se antes da invasão europeia não existisse no seio dos indígenas qualquer tipo de estruturação orgânica dos modus vivendi e como se estes povos não tivessem até esta invasão uma cosmovisão própria.
Este é um discurso luso-tropicalista de julgamento do Outro com base num Eu que, também, vai construindo a sua cosmovisão com base na sua forma de interpretar a realidade que não pode ser tida como única e totalmente válida por se considerar que a percepção sobre o mundo não é um dado conseguido e acabado. Contudo, é esta cosmovisão ocidental que se quer impor como universalmente válida, fazendo com que os ex-colonizados/descendentes de escravos sejam eternos devedores da “civilização” que têm na actualidade.
São estas posturas para com a história que Ualalapi e Choriro procuram contrapor rumo a uma renovação ideológica do mundo actual. Esta renovação, portanto, deve ter carácter bipolar, ou seja, tem que envolver os dois intervenientes do processo de colonização (colonizado e colonizador) porque:
- Se é verdade que a invasão europeia foi duma violência extrema, é também verdade que a colonização e a violência são fenómenos meta-históricos impregnados na espécie humana independentemente do tempo e do espaço em que estiver;
- Se é verdade que antes da invasão europeia não havia uma tradição escrita massificada[3] entre outros aspectos, é também verdade que antes desta invasão havia uma vivência socialmente organizada em termos administrativos, económicos, morais, éticos, etc;
Deste modo, em Ualalapi e Choriro procura-se gerar um pensamento crítico situado na fronteira[4] entre estas duas posturas descritas acima, pois, além de se inscrever neste debate ideológico numa atitude de revolta, como normalmente se observa em narrativas africanas, estas obras procuram empreender um posicionamento crítico que questiona duas práticas discursivas que encontram na história alguma fundamentação que nelas (nas obras em análise) é posta em causa com o relato de acções que embora sejam fictícias, a sua significação no plano da realidade viabiliza a necessidade de se traçar um “meio-termo”, em termos ideológicos, por parte dos povos em contacto ao longo da colonização europeia em África.
[1] Pós-colonial não designa um conceito histórico ou diacrónico, mas antes um conceito analítico que reenvia às literaturas que nasceram num contexto marcado pela colonização europeia. A crítica pós-colonial esforça-se por (…) propor uma nova visão de um mundo, caracterizado pela coexistência e negociação de línguas e de culturas. (LEITE: 2003, p. 5)
[2]KARNAL. Leandro. O Ódio no Brasil. [disponível via: http://www.youtube.com/watch?v=iG-OGc1bufs] visto a 19 de Julho de 2014
[3] Tendo em conta que houve antes do europeu, o contacto com o mundo árabe.
[4] Assume-se aqui o conceito de fronteira na óptica de Santos (2002: 38) apud Leite (2003: 17), que preconiza “a deslocação do discurso e das práticas do centro para as margens.”
Elísio Miambo é docente e escritor.