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Primeiro, há um debate sobre se “as dívidas” são ocultas ou não declaradas. Não é, nem de longe, nem de perto, o mais importante debate da semana. Sei que é possível ficarmos a mastigar o sentido das palavras, mas realmente, posto nesta forma, este debate é um não-assunto.

Apesar disso, é claro que “ocultas” e “não declaradas” não são uma boa descrição do problema pois não cobrem a EMATUM nem cobrem a totalidade do ilícito envolvido (a ocultação ou a não declaração são apenas uma parte do ilícito) e das suas consequências.

Podemos formular a questão de outra forma: as transacções envolvidas são ilícitas, o que resultou em dívida odiosa.

Em finanças internacionais existe o conceito de “dívida odiosa” que provêm de transacções ilícitas. O nosso problema é melhor caracterizado desta forma do que chamando-lhe dívidas ocultas ou não declaradas. Além disso, esta caracterização permite fazer o argumento internacional para libertar o Estado e o Povo do encargo dessas transacções e dívidas, declarando as primeiras ilícitas e a segunda, por consequência, odiosa.

Ao contrário do que o Adriano Maleiane diz, a declaração da dívida como odiosa não implica uma má imagem para o país. O governo terá de fazer o argumento junto das organizações financeiras internacionais e tentar vencê-lo provando o ilícito das transacções. Ao contrário do que diz Maleine, esta seria a atitude responsável. Fazer o povo pagar por isso, com argumentos tão bizarros e falsos como “Moçambique foi sempre bom pagador”, ou “contratos não se renegoceiam”, é cruel, injusto e totalmente irresponsável.

O FMI, o Banco Mundial, a União Europeia – sim, sei que representam os interesses imperialistas e não são de confiar, características estas que infelizmente também servem ao nosso próprio governo – sugeriram, em 2016/17 que a declaração do ilícito e da natureza odiosa das dívidas era o caminho mais certo, mas impuseram a plena e completa auditoria das transacções ilícitas e da divida pública como condicionalismos, o que o governo não aceitou.

O governo preferiu negociar com os accionistas em termos bastante desfavoráveis em vez de seguir o caminho da declaração do ilícito, e, mais tarde, preferiu entregar, em termos muito desfavoráveis, recursos e reservas estratégicos, como, por exemplo, o gás, para manter os mercados financeiros multinacionais interessados e evitar o completo colapso da economia.

O Maleiane e este governo não vão fazer a declaração do ilícito das transacções nem fazer o pedido de declaração das dívidas consequentes como odiosas. Além da sua incompetência e cobardia, e da sua ideologia neoliberal, eles estão demasiado comprometidos com os factos e politicamente.

Só uma revolução nacional os levaria a mudar.

Portanto, as dívidas são odiosas, as transacções são ilícitas (oculto ou não declarado é apenas uma parte do ilícito).

Segundo, neste tribunal estão a julgar a apropriação indevida de US$ 50 milhões. A dívida odiosa é 50 vezes maior que isso. Estamos a julgar as comissões pelo negócio ilícito que causou a dívida odiosa, mas apenas as comissões, não o negócio ilícito.

Por mais importante e genuíno que este julgamento possa ser, é preciso estarmos claros que é um julgamento de comissões, intermediários e estafetas, não é das transacções ilícitas, das dívidas odiosas e do capitalismo nacional.

Para julgarmos o negócio, teríamos de estar preparados para ter a cabeça do negócio entre os arguidos – supostamente, o ex-PR Guebuza, o ex-Ministro da Defesa Nyusi, o ex-Ministro das Finanças Chang, etc. Teríamos de estar preparados para examinar como e quais as razões por que a liderança da Frelimo e do Estado tentaram fazer um cover up (e continuam a fazer). Teríamos de estar preparados para julgar os custos sociais e políticos desse cover up, e responsabilizar quem de direito pelas transacções ilícitas e pelo cover up. Teríamos de estar preparados para julgar a burguesia oligárquica nacional emergente, os seus satélites e tentáculos e o seu modo de acumulação, bem como para julgar os condicionalismos neoliberais internacionais que ajudaram a criar o nosso capitalismo parasitária, improdutivo e criminoso.

Não estamos minimamente preparados para isto, nem teórica e conceptualmente, nem politicamente, nem organizacionalmente, nem “tomatamente” (não os temos).

Mesmo com a melhor das intenções do mundo, mesmo supondo que realmente, genuinamente, o Estado quer julgar estes assuntos, este julgamento acaba servindo também para cover up. Estes arguidos podem todos ser bandidos merecedores de penas severas, se o tribunal o conseguir provar para além de qualquer dúvida, mas são apenas os intermediários, os estafetas que levaram os papéis, a informação, as tabelas, os contactos, e comeram US$ 50 milhões no processo. Mas eles não são a estrutura do problema.

A estrutura do problema está oculta, não declarada, sugerida mas não investigada, escondida atrás do escândalo mais pequeno mas mais brilhante que se transformou em telenovela. Parece um filme liberal de Hollywood – cheio de moral, vazio de substância.

Neste sentido, a defesa dos réus tem mais armas que o MP porque, no limite, pode argumentar que os réus apenas receberam comissões de intermediação do negócio que o Estado quis fazer nos termos em que fez, e que as comissões, sendo 2% do negócio, não são o problema do negócio.

Se conseguirem argumentar isso, podem pôr dúvidas suficientes para o tribunal não conseguir provar a culpa para além de qualquer dúvida.

Se estes arguidos forem declarados livres por não se ter provado a sua culpa para além de qualquer dúvida (isso não quer dizer declarados inocentes, mas “culpados não declarados”), ou se forem punidos por outras razões paralelas (por exemplo, fuga ao fisco em vez de peculato, etc.), o momentum para julgar o problema das dívidas odiosas desaparece, a sua arrogância aumentará, e com ela crescerá a ideia de que são intocáveis, de que beneficiam de imunidade de grupo social, de classe social, de ligações familiares. Vai ser difícil voltar ao assunto. O MP encerrará o caso.

Mesmo que eles sejam condenados pelos crimes todos de que são acusados pelo MP, essa condenação vai fazer morrer o assunto das dívidas odiosas, o Estado e o povo vão continuar a pagar os custos, as estruturas de acumulação continuarão, os chefes da máfia nacional manter-se-ão.

O nosso desejo de ver justiça, ou vingança, a todo o custo põe-nos em risco de aceitar um processo e um resultado que ficam parte do grande cover up. Às vezes, o cover up é involuntário, inconsciente, acontece sem que tenhamos tido a consciência ou o desejo de o provocar. E alegremente continuaremos a pagar o custo social das dívidas odiosas e do modo de acumulação de capital porque estamos satisfeitos pela punição que os estafetas e intermediários deste processo todo receberam.

Se queremos mesmo resolver este assunto, há duas coisas a fazer: (i) declarar as transacções ilícitas e lutar pelo estatuto de dívida odiosa não pagável e (ii) julgar as transações ilícitas e a dívida odiosa, e todas suas causas e consequências fundamentais, julgamento esse em que os arguidos actuais seriam arguidos também, mas não os seus protagonistas criminais (seriam os arguidos acessórios, serism os assalariados dos donos do negócio e da lógica social, económica e política do negócio).

*Carlos Nuno Castel-Branco

Economista moçambicano