02-04-2010
A pandemia do Covid-19 tem abalado os mais robustos sistemas de saúde. Sendo um vírus novo e sem imunidade, estima-se que entre 40 e 70% da população mundial poderá ser infectada. Em comparação com uma gripe, a facilidade de infeção e o índice de fatalidade é muito mais elevado. Não havendo cura nem vacina, um crescente número de países tem introduzido um chamado “lockdown” para reduzir a sobrecarga do sistema de saúde. Porém, como salientou o Director Geral da Organização Mundial de Saúde, esta abordagem apresenta enormes desafios para países em desenvolvimento que têm, na melhor das hipóteses, uma rede furada de protecção social:
Alguns países têm um sistema de assistência social forte, e alguns países não têm. Eu sei que muitas pessoas têm que trabalhar todos os dias para ganhar o seu pão diário. E os governos têm que tomar em conta esta população…A maneira em que cada indivíduo é afectado pelas nossas acções, tem que ser considerado.
Ontém entrou em vigor o Estado de Emergência por razões de calamidade pública. Segundo o Decreto Presidencial nº 11/2020[i] durará 30 dias, com a possibilidade de alteração. O Decreto prevê uma série de medidas restrictivas orientadas para a contenção da propagação do COVID-19. Estas incluem a proibição da realização de eventos públicos e privados; a rotatividade laboral; e o encerramento de estabelecimentos comerciais, de diversão e equiparados, ou pelo menos a redução da actividade – uma ambiguidade perigosa pois deixa decisões punitivas ao critério da Polícia e das restantes Forças de Defesa e Segurança.
Nem toda a actividade económica é prevista cessar. O Decreto prevê a reorientação do sector industrial para a produção de insumos necessários ao combate à pandemia e a continuação de atividades essenciais incluindo: serviços médicos, hospitalares e medicamentosos; abastecimento de água, energia e combustíveis; venda de bens alimentícios e de primeira necessidade; carga de descarga de animais e géneros alimentares deterioráveis; correios e telecomunicações; controle do espaço aéreo e meteorológico; serviços de salubridade; bombeiros; segurança privada e serviços funerários.
No entanto, a experiência internacional indica que a estratégia de “lockdown” tem implicações sociais e económicas sérias. A Organização Internacional do Trabalho prevê um aumento significativo de desemprego, subemprego e erosão salarial, em parte por causa do aproveitamento da crise pelos empregadores. Hoje, a Confederação das Associações Económicas de Moçambique fez uma proposta atrevidíssima: a suspensão de contratos de trabalho durante seis meses e a substituição de salários por subsídios pagos pelos doadores. Segundo a CTA, esta é a única forma de assegurar as condições de vida dos trabalhadores – quais condições, não está bem claro.
Durante momentos de crise ou calamidade, o impossível torna-se rapidamente possível. O desespero pode aprofundar a expropriação e exploração, ou abrir uma janela para intervenções que visam melhorar a vida de todos os cidadãos. O Decreto Presidencial prevê medidas punitivas, mas não faz referência a quaisquer medidas protectivas. Em Moçambique, 88% da população economicamente activa são trabalhadores informais, que não usufruem de protecções laborais e sociais. Mesmo entre os trabalhadores assalariados no sector formal, uma parte significativa não está inscrita no sistema de segurança social obrigatória, ganha salários abaixo da linha de pobreza familiar e trabalha em condições extremamente precárias. Portanto, para a maioria, um “lockdown” sem medidas protectivas, significa escolher entre morrer de fome e morrer de COVID-19 (ou da associada repressão). Ou seja, é materialmente impossível, moralmente inadmissível e politicamente perigoso.
Afortunadamente, Moçambique tem um sistema de proteção social, ainda que incipiente, composto por dois eixos. O primeiro é a Segurança Social Obrigatória, que proporciona prestações a segurados, financiadas pelas contribuições dos trabalhadores e empregadores. No sector privado é gerido pelo Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), e na função pública pelo Instituto Nacional de Previdência Social e pelo Banco de Moçambique. Este, é limitado principalmente a trabalhadores no sector formal, o que, dada a divisão sexual do trabalho, exclui desproporcionalmente as mulheres.
O segundo eixo é da Segurança Social Básica, que proporciona transferências monetárias aos cidadãos vivendo em situação de pobreza e vulnerabilidade, financiado principalmente pelo orçamento do Estado, e gerido pelo Instituto Nacional Acção Social (INAS). Em 2019 visava cobrir 609.405 agregados familiares, com alocações orçamentais equivalente a 1.6% do orçamento do estado. O maior programa é o Programa do Subsídio Social Básico, que proporciona uma transferência mensal de entre Mts 540 e Mts 1000 a agregados familiares incapacitados para o trabalho – a maior parte deles pessoas idosas. O segundo maior programa é o Programa de Acção Social Produtiva, que proporciona uma transferência sazonal de Mts 1.050 por mês, a agregados familiares capacitados para o trabalho, condicionada na participação em trabalhos públicos. Portanto, existe uma estrutura administrativa para canalizar fundos rapidamente a famílias pobres e vulneráveis.
Também é importante reconhecer que o funcionamento da sociedade durante o período de Estado de Emergência requer a continuação de um leque de actividades económicas. No contexto moçambicano, actividades essenciais são desempenhadas tanto por trabalhadores no sector formal, como no sector informal. Os trabalhadores informais produzem, distribuem e vendem bens alimentícios e de primeira necessidade; realizam funções de limpeza e segurança; e podem produzir e distribuir insumos que contribuem para o combate à pandemia. Tanto os trabalhadores formais como os trabalhadores informais devem ser considerados trabalhadores da linha da frente e protegidos como tal.
Propostas para garantir a protecção do trabalho, dos trabalhadores e do rendimento:
O Decreto terá um impacto diferenciado no rendimento familiar, dependendo da natureza da relação de trabalho (formal ou informal), o sector (essencial ou não essencial), a localização geográfica (campo ou cidade). O impacto será mais sentido por agregados familiares que dependem de um rendimento, ou seja, não têm como produzir os seus próprios alimentos (principalmente zonas urbanas), não têm um emprego permanente com protecções laborais e sociais, e não têm poupanças. Mas terá também implicações para trabalhadores permanentes no sector formal, dado o aumento previsto do desemprego e do subemprego, bem como do custo de vida.
Propostas para garantir a protecção de trabalho:
- Na medida do possível, a entidade empregadora deverá reorganizar o trabalho (trabalhar desde casa, rotatividade, etc.), salvaguardar a relação laboral e proteger o salário.
- Em casos onde o empregador tem que suspender as suas actividades por razões financeiras, tem a responsabilidade de continuar a pagar 75% do salário, segundo a Lei de Trabalho.
- De modo a proteger as entidades empregadoras e trabalhadores, deve considerar-se a suspensão de pagamentos de amortizações e rendas durante o período do Estado de Emergência, bem como dos créditos bancários destinados ao sector produtivo.
Propostas para garantir a protecção dos trabalhadores da linha da frente, incluindo trabalhadores informais:
- Todos os trabalhadores essenciais, incluindo os trabalhadores informais engajados em atividades essenciais, devem ser protegidos como trabalhadores da linha da frente. Eles devem ter acesso aos necessários equipamentos de saúde e segurança ocupacional, meios de transporte seguros, acesso a assistência médica e medicamentosa se necessária, e protecção em vez de repressão das Forças de Defesa e Segurança.
Propostas para garantir a segurança de rendimento para os trabalhadores desempregados e informais:
- O INSS deverá considerar a introdução de um subsídio de desemprego de Estado de Emergência. Este seria pago a todos os beneficiários inscritos no subsistema, independentemente do seu histórico contributivo até a empresa retomar a sua actividade normal. Os trabalhadores informais já inscritos no INSS também teriam direito a este.
- O INAS deverá considerar a expansão de cobertura dos seus programas a todos os candidatos inscritos na lista de espera, e o aumento do subsídio durante os próximos 6 meses, de modo a compensar os agregados familiares pela perda de rendimento como resultado do Estado de Emergência.
- Para os trabalhadores informais que não estão inscritos no INSS nem no INAS, uma opção a curto prazo seria a introdução de um rendimento básico universal no meio urbano e suburbano e, posteriormente, a sua integração no INAS. Dada a fraca diferenciação de consumo nos primeiros três quintais da população e a natureza dinâmica da pobreza, uma focalização com base em parâmetros socioeconómicos corre o risco de cometer erros de inclusão e exclusão. Uma abordagem universal reduziria este risco e garantiria o direito à proteção social consagrado na Lei da Protecção Social.
Momentos de calamidade resultam em drásticas mudanças. Estas mudanças podem resultar num aumento da pobreza e desigualdade, através de medidas de austeridade, a liberalização do mercado de trabalho, a proliferação de isenções fiscais para os megaprojectos, etc. Mas também podem resultar na expansão da função redistributiva do Estado, através da socialização dos serviços socias básicos, da expansão do sistema de protecção social, a reorientação dos processos de produção.
[i] RdM. Decreto Presidencial nº 11/2020 de 31 de Março.
ANEXOS:
A população economicamente activa, segundo o processo laboral, 2019
Evolução de agregados familiares beneficiários de ação social, 2008-2019
Nível dos subsídios dos programas do INAS, como % da linha da pobreza média mensal individual (projecções da UNU WIDER)
Consumo mensal per capita (em MZN, por quintil, 2014/15)
* Ruth Castel-Branco é pesquisadora em Future of Work, no Centre for Inequality Studies da Universidade de Witwatersrand. É membro do Comité Editorial d´Alternactiva.