Alternactiva

Na Alemanha, na cidade Braunschweig, enquanto apreciava a estatueta de Richard Wagner, na sala enorme do staatstheater grosses haus, apareceu-me um velho de cabelo quase gasto pelo tempo e o seu nariz tinha uma ligeira lesão causada pelos pesados óculos que carregava. O velho tinha na mão um exemplar original de Horkheimer e Adorno Dialectic of Enlightenment (Dialéctica do Iluminismo). O velho deixou-me tocar no livro e num português puxado do alemão, com sotaque de Munique, disse-me: “são os rapazes de Frankfurt. Os rapazes de 1923”. Dedico a ele este texto.

Sabe-se que a televisão que se faz hoje difere-se, em pequenos aspectos, daquela que teve as suas primeiras emissões no final dos anos 20, em Londres, através de Alexandre Place. Encontramo-nos, enfim, no considerado discurso mais evoluído de televisão: o da pós-televisão. Todavia, é nesse mesmo discurso evoluído onde estamos, paralelamente, atrasados. Estamos no melhor momento para produzir uma televisão de qualidade, mas paradoxalmente temos uma televisão de uma qualidade que não enche duas palmas.

Já estivemos no discurso da proto-televisão onde os profissionais de televisão eram autênticos mestres; seres humanos “abençoados” de sabedoria infinita. Neste discurso a televisão só tinha como tarefa fundamental a de transmitir saberes. A televisão era como um ancião que só se limitava a transmitir conhecimentos aos mais novos. Depois veio a neo-televisão quebrar esse pedagogismo centrado e criar janelas próprias de interacção entre os fazedores da televisão e os seus consumidores (espectadores). A passividade (do espectador) terminou, a hegemonia (do fazedor de televisão) desmoronou-se e a pós-televisão com a sua tendência de abranger públicos mais diversificados se instalou. Somos a pura síntese desses dois grandes momentos. Somos o resultado dessas rupturas.

Estamos na época da pós-televisão, mas continuamos a fazer das nossas televisões espaços de refinamento da mais plural ignorância. A televisão de hoje devia ser um espaço de amplificação de vozes, do conhecimento, ou seja, uma língua que promovesse o pluralismo discursivo; no entanto, esse aspecto é minimizado por um pluralismo agudo de ignorância. O congelamento identitário e racional que as nossas televisões promovem, em detrimento do deseraizamento, levam-nos a concordar com um dos expoentes da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, quando refere que a maioria das emissões televisivas visa hoje produzir, ou, pelo menos, reproduzir, a suficiência, a passividade intelectual e a credulidade que parecem concordar com os credos totalitários, mesmo se a mensagem explícita dos espectáculos é antitotalitária.

A passividade intelectual que em estado avançado leva-nos a um pensamento unilateral é um dos aspectos que as nossas televisões nos proporcionam como legado. O conteúdo que as nossas televisões nos trazem é movido por uma ignorância ingénua e simples. No fundo esse conteúdo é transmitido por mentes que pensam que emitem conteúdos simples (visto que conteúdos complexos baixam a audiência). Há diferença entre ignorância simples e conteúdo simples. Esse pensamento “simplista” funda-se, talvez, na teoria das agulhas hipodérmicas que vê os espectadores como sujeitos indefesos que agem em função do que lhes é transmitido. A ignorância simples é um simulacro do conteúdo ou conhecimento simples; é uma péssima cópia do simples. O simplismo é útil quando associado ao conhecimento e devastador quando multiplicado à ignorância.

Em nosso período temos apenas apresentadores. Soa muito bem esse conceito por nos levar à ideia de que eles simplesmente captavam um determinado acontecimento e, por sua vez, transmitem-no ao espectador. Todavia, esses mesmos apresentadores mancham a nossas televisões. Pois, esquecem-se que eles não são meros apresentadores, mas sim profissionais que vivem um determinado acontecimento para depois transmiti-lo a outros. A representação da realidade e sua transmissão ao outrem só é possível quando os níveis de conhecimento e persuasão estão equilibrados e bem treinados. Podemos recordar aqui com Barthes quando dizia que a imagem é polissémica. Essa polissemia deve ser bem articulada pelo apresentador para que o espectador tenha a sua própria perspectiva de análise ou observação e não caía no raciocínio limitado e institucional do apresentador. A teoria de referencial semântico diz-nos que a credibilidade dum determinado acontecimento é influenciada pela persuasão e conhecimento que se tem dele. Por cá temos apresentadores superficiais, rasos, que se limitam a tarefa de meros trabalhadores de acontecimentos e não apresentadores dos mesmos. Aqui uma nostalgia ingénua da proto-televisão surge-nos, pois naquele período existiam fazedores de conteúdos. Como bem observou Adorno que o conceito de informação deve ser mais adequado à televisão, visto que pensar que a informação seja mera transmissão de factos, ou seja, apresentação do dado, do imediato, requer certos cuidados. Uma informação pode ser administrada, manipulada e ou produzida.

Os tesouros das nossas televisões, telejornais, viraram deveras centros de encadeamento acrítico de todo tipo de acontecimento. E o mais insustentável é que este cenário é geral. Os noticiários deixaram de ser um centro de desconstrução de acontecimento e factos; recuperando Marx, podemos dizer que são ciclos televisivos onde os temas abordados estão subordinados aos interesses económicos, políticos e ideológicos dos seus proprietários. E isto acaba resultando no desaparecimento de meios de comunicação de massas independentes, a concentração de mercados, a rejeição dos riscos e o esquecimento das minorias pobres, porque, do ponto de vista da lógica capitalista, o seu poder de compra é insignificante.

A tudo isso se associam os pseudo-acontecimentos (Daniel Boorstin) para assegurar a audiência; situações desenvolvidas por jornalistas para criar um evento que, em condições normais não aconteceria; a publicidade que é difundida pela televisão, que, no entanto, é mais valorizada que a própria televisão. Talvez tenha sido esse acasalamento entre a imprensa e o capital que levou Nicolas Will a declarar que “a informação é o lubrificante do capital”.

Não nos esqueçamos das nossas televisões que funcionam com revisores pacatos; revisores sem experiência e sem um mínimo de familiaridade com a revisão textual e a própria televisão. Por isso a cada programa assistimos a um festival de lapsos linguísticos (de palmatória). São erros gravíssimos porque a mínima revisão que se faz limita-se a simples correcção de questões gramaticais e ortográficas nos textos. Esquecendo-se que a revisão linguística é apenas uma das modalidades de revisão de um texto. São revisores que não sabem da importância, dentro da televisão, da revisão gráfica, normalizadora e temática.

O velho que encontrei na cidade Braunschweig, com livro Horkheimer e Adorno quando se ia embora retorquiu em voz alta no teatro: “somos produtos da indústria cultural”. E eis que agora, depois de muitos meses, dentro dessa indústria cultural me atrevo a identificar os pecados capitais e capitalistas que crucificarão as nossas televisões.

 

* Sérgio Raimundo é licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Universidade Eduardo Mondlane. Consultor linguístico e escritor, é  membro do Comité Editorial d´Alternactiva.

Edição: Boaventura Monjane