A pesca é uma atividade ancestral muito importante e contribui imenso na dieta de grande parte da população Moçambicana. O camarão, um dos recursos pesqueiros mais importante das águas nacionais, é explorado numa região conhecida como Banco de Sofala, pela alta produção deste recurso. Esta região, concentra maior parte dos pescadores artesanais do país e as principais frotas de pesca de camarão.
A pesca artesanal do camarão no Banco de Sofala ocorre principalmente nos rios, estuários e praias rasas onde as canoas e lanhas podem navegar facilmente enquanto aos barcos industriais só é permitido pescar depois de 3 milhas da costa, isto é, em zonas mais profundas do mar.
Pelo seu elevado valor comercial, o camarão é um recurso muito procurado e por isso as suas capturas flutuam anualmente. Contudo, nos últimos anos esta pescaria apresentou uma redução drástica das capturas e chegou a níveis de sobre-exploração, isto é, os níveis de captura chegaram a baixar em mais de 80% se comparado com os de 1990, por exemplo. Pela sua importância económica e social a pescaria de camarão é alvo de um trabalho de avaliação e gestão continuo por parte das instituições pesqueiras nacionais que, com base em pesquisas, determinam as medidas de gestão a serem aplicadas de forma que não se afete a reprodução e o crescimento do camarão para a pesca seguinte, respeitando o meio ambiente e garantindo o bem-estar social.
Medidas como a introdução de períodos de veda (que corresponde ao período em que é proibida a pesca do camarão no Banco de Sofala), o uso de malhagem mínima da rede recomendável (rede com um tamanho mínimo da malha suficiente para permitir que as larvas de camarões menores se escapem e possam crescer) e o fechamento do licenciamento de barcos industriais (controle do numero de barcos industriais na pesca), são algumas medidas de gestão aplicadas e atualizadas anualmente em respostas ao problema negativo da diminuição do camarão pela ação direta da pesca.
Na região do Banco de Sofala, instituições de gestão pesqueira combatem arduamente a prática de pesca com redes mosquiteiras e outras redes nocivas e o período de veda é previamente determinado e publicado de forma que os pescadores não se façam ao mar nessa época. Decorrem campanhas de sensibilização e equipas de fiscalização patrulham os centros de pesca, o que inclui a apreensão e destruição das redes mosquiteiras para garantir que se respeitem as medidas determinadas.
Evidências do campo
Recentemente estive em trabalho de campo no banco de Sofala nos estuários de Macuse e Bons Sinais na Província da Zambézia, em pleno período de veda nos meses de janeiro, fevereiro e Marco. Visitei por vários dias e em diferentes horários o porto de pesca da cidade de Quelimane, ali estavam atracadas grandes embarcações industriais de pesca de camarão das principais empresas. A pesca estava paralisada em cumprimento do período de veda que se estenderia ate ao 1 o de Março correspondendo a cerca de 5 meses de paralisação para a pesca industrial e três meses para a pesca artesanal. Também realizei visitas aos centros de pesca artesanal de Icidua e Chuabo Dembe pelas manhãs e ali presenciei a atividade de pesca e comercialização do camarão, lanchas e canoas artesanais atracavam e um comercio um pouco discreto acontecia nos locais. Ao mesmo tempo devo dizer que também conheci pescadores artesanais como o caso do senhor Juma, que tinham as suas redes dobradas e armazenadas enquanto esperavam as ordens de abertura da pesca tal como os industriais no porto.
Em Março houve a abertura da pesca e os barcos industriais e os artesanais se fizeram ao mar. Voltei aos centros de pesca para avaliar os resultados. Naquela semana o senhor Juma tinha lançado as suas redes todos os dias de maré viva, apesar de ter conseguido capturar alguma coisa nas suas redes. A diferença na quantidade e no tamanho do camarão era insignificante para este pescador, que seguiu com camarões de tamanhos menores e capturas de apenas alguns quilogramas. Para o sector industrial, notei a diferença nas capturas pela quantidade de camarão de tamanho maior, processado e embalado, inundando subitamente o mercado de Quelimane e a preços muito competitivos.
A introdução do tempo de veda e a malhagem mínima, por exemplo, são medidas que permitem aos camarões juvenis (ainda pequenos) estar no rio (estuário) durante o período de crescimento e passarem livremente para o mar onde completam o seu crescimento sem grandes perturbações. Estas medidas protegem o camarão de ser capturado ainda menor, aumentando assim a quantidade de camarão na zona de pesca.
Apesar de ser uma medida de gestão coerente e permitir ao camarão tempo para se regenerar do efeito da pesca. Por outro lado, se entendermos que os pescadores artesanais, não conseguem, por definição das suas condições materiais, ir até as zonas de pesca e buscar e camarão maior, o único beneficiado destas medidas é o sector industrial que opera nesta zona.
Os grandes tiram sempre vantagem
Os sectores industrial e semi-industrial mostram-se frequentemente a favor dos períodos de veda, e fazem uma forte pressão para a acção dos gestores na eliminação do problema de pesca com redes mosquiteiras e nocivas nos estuários e rios. Embora os pescadores artesanais que pescavam no período de veda reconheçam de uma forma geral a importância da medida de gestão para a regeneração do camarão, afirmam também que a falta de opções de sobrevivência (emprego e outras atividades de renda) e a pressão do inicio do ano escolar nesse período, nem sempre os permite optar pelo caminho da conservação.
O camarão do Banco de Sofala tem processos vitais do seu crescimento que o obrigam a realizar migrações entre o mar e o estuário durante fases da sua vida. Capturado no alto mar pela pesca industrial ou nos estuários, rios e praias ainda menor pela pesca artesanal, o camarão é o mesmo que afinal abastece os três sectores. Apesar de não beneficiar substancialmente do efeito positivo do período de veda, os comportamentos dos pescadores artesanais nos rios e estuários tem uma grande influencia nas capturas do camarão do ano seguinte. Reconhecendo-se esse tipo de conflitos de interesse em outras regiões de pesca, o objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) numero 14 da ONU, que Moçambique ratificou, lança o desafio da necessidade de proporcionar o acesso dos pescadores artesanais e de pequena escala para os recursos marinhos e mercados. Associado a isso, num cenário em que as mudanças climáticas afectam a região da costa de Moçambique, é imprescindível reconhecer a importância dos pescadores artesanais na proteção das zonas de berçário do camarão.
É preciso lembrar que em Março de 2019 a cidade da Beira foi atingida por um ciclone que se formou no mar e atingiu a costa na sua máxima força, deixando um rastro de destruição provavelmente de difícil recuperação para os pescadores artesanais deste ponto do Banco de Sofala.
A postura de pescador nocivo é severamente desencorajada e os “pescadores infratores’’ incorrem ao risco de punições e coimas várias. Mas como chamaríamos aos pescadores que optam pelas boas praticas? O senhor Juma e os homens e mulheres que arrumam as suas redes e esperam pela abertura da veda indo a machamba ou apenas ficando em casa? Um grupo de heróis não reconhecidos em todo processo sobressai, os guardiões do serviço ecossistémico de proteção do habitat de crescimento do camarão do Banco de Sofala.
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* Halaze Manhice é docente universitária (Universidade Eduardo Mondlane). É doutoranda em Alterações climáticas e políticas de Desenvolvimento sustentável no Instituto Superior Tecnico da Universidade de Lisboa. É membro do Comité Editorial d´Alternactiva.