Alternactiva

Boaventura de Sousa Santos

“Dirijo-me aos jovens porque serão os jovens a carne para canhão da Terceira Guerra Mundial, por mais sofisticada que seja a alta tecnologia”, diz o sociólogo

Dirijo-me aos jovens na condição de alguém que pela idade não vai combater na próxima guerra mundial (Terceira Guerra Mundial) e talvez nem assista ao seu início.

Queria apenas transmitir-lhes as seguintes ideias, que tenho por fundamentadas: estou convencido de que se aproxima uma Terceira Guerra Mundial; ao contrário das anteriores, o campo de batalha será todo o planeta e, pela primeira vez, incluirá o território dos EUA; por mais sofisticada que seja a tecnologia militar e a Inteligência Artificial que a suporta, vão ser necessários soldados no terreno que irão morrer aos milhões, juntamente com populações civis inocentes. Mais do que em qualquer guerra anterior; esses soldados serão os jovens e não os senhores da guerra, sejam eles os políticos (que nunca submeterão a referendo a decisão de fazer a guerra), sejam os empresários e accionistas das empresas do complexo industrial-militar; a única certeza que temos sobre a guerra é que sabemos quando começa, mas não quando acaba; a especificidade da Terceira Guerra Mundial é que, quando terminar (todas as guerras terminam), estará em risco, pela primeira vez, não apenas a sobrevivência da espécie humana, mas a vida não humana do planeta.

É uma previsão distópica, mas suficientemente realista para que proliferem hoje religiões centradas na ideia do apocalipse. Ao contrário da delas, a minha mensagem é espinosiana, isto é, assenta na dialéctica do medo e da esperança. Eu sei que a maioria dos jovens, quando olha para o futuro, tem muito medo e pouca esperança. Se quiserem ter mais esperança é preciso estarem preparados para incutir medo aos poderosos deste mundo que, aparentemente, deixaram de ter medo dos seus inimigos e vivem numa orgia de esperança.

Antes de prosseguir, quero afirmar aos jovens que, apesar de ter nascido na Europa, falo a partir do Sul global com as lentes das epistemologias do Sul. E, por essa razão, o que disse acima é apenas meia-verdade. Vista do Sul global, a Terceira Guerra Mundial já começou (basta ter em mente o Iraque, Afeganistão, Líbia e Siria).

Quando falo da futura Terceira Guerra Mundial quero apenas significar que a escala da guerra existente vai aumentar exponencialmente e que ela atingirá também os países do Norte global, a condição sine-qua-non para que algo se torne global, seja uma guerra ou uma pandemia.

O interesse em promover a guerra

Em todas as guerras há um país ou império particularmente interessado em promover a guerra. Na Primeira Guerra Mundial, o mais agressivo era o império alemão; na Segunda Guerra mundial, a Alemanha de Hitler.

Ninguém no Sul global acredita que a Rússia ou a China estejam interessados em promover a guerra. Os impérios ascendentes preferem relações soma positiva a relações de soma zero (como, por exemplo, a guerra). A sua ascensão e incremento da sua influência assentam em proporcionar vantagens reais aos novos aliados ainda que sujeitas a condições de subordinação. Por isso, privilegiam a diplomacia e o multilateralismo.

Pode parecer estranho dizer que a Rússia não está interessada na guerra, quando foi a Rússia que invadiu a Ucrânia em 2022. Todos os activistas da paz, entre os quais sempre me incluí, condenaram essa invasão embora dissessem desde o início (o que se confirmou depois) que essa invasão fora provocada pelos EUA com preparativos que datavam desde o fim da União Soviética em 1991. O objectivo foi desde o início enfraquecer a Rússia e provocar o seu desmembramento. Em 1997, o político norte-americano de origem polaca Zbigniew Brzezinski propunha a divisão da Rússia em três grandes unidades. Foi a mesma lógica de enfraquecimento pelo desmembramento que presidiu ao bombardeamento em 1999 da Jugoslávia (ou Sérvia), aliada da Rússia, tornando assim possível instalar uma enorme base militar dos EUA-NATO no Kosovo. Nos meios estratégicos tem-se discutido muito a chamada armadilha afegã (Afghan trap), ou seja, os meios utilizados pelos EUA (de novo, na era Brzezinski) para induzir uma invasão do Afeganistão por parte da União Soviética em dezembro de 1979 com o objectivo de a enfraquecer. Os detalhes não interessam para este texto, mas com base neles é possível suspeitar que a invasão da Ucrânia por parte da Rússia foi uma nova versão da Afghan trap, a Ukraine trap, com os mesmos propósitos, ainda que o desfecho possa ser muito diferente. A armadilha ucraniana começou a ser construída logo depois do fim da União Soviética, com a permanência da NATO depois do fim do Pacto de Varsóvia e com o projecto de inclusão da Ucrânia na NATO, ao lado de outros países que servissem de escudo contra a base naval da Rússia na Crimeia. Além da Turquia, que era membro da NATO desde 1952, juntaram-se à aliança a Roménia e a Bulgária (2004), faltando apenas a Geórgia, o que terá de passar primeiro pela estratégia de regime change (a mesma que foi utilizada na Ucrânia em 2014).

Quem promove a guerra não quer negociações reais de paz, mas encena sucessivos shows de propostas de paz sem a participação de uma das partes em guerra para que o ónus da continuação da guerra recaia sobre esta última e assim se alimente a guerra de propaganda. Foi assim que os EUA impediram a única genuína negociação de paz entre a Rússia e a Ucrânia que teve lugar dois meses depois do início da guerra. Para o efeito, foi facilmente mobilizado o então primeiro ministro do Reino Unido, Boris Johnson, cujo inconsciente imperial deve continuar assombrado pela guerra da Crimeia contra a Rússia (1853-56). Em contraste com esta atitude, a Rússia apresentou desde 2008 cinco propostas sérias de paz e segurança para a região, e todas elas foram rejeitadas pelos EUA.

Sabemos hoje que o grande rival dos EUA não é a Rússia, mas a China. Os três principais teatros de guerra em que os EUA estão actualmente envolvidos, Ucrânia, Palestina (e no Medio Oriente, em geral) e Mar da China visam o mesmo objectivo: isolar a China e impedir o acesso da China à Europa e às zonas de influência dos EUA. A guerra é sempre o último recurso, precedido frequentemente de desestabilização de regime change, ou seja, interferência activa na vida interna dos países-alvo para provocar mudanças políticas que tornem possível criar distância e hostilidade em relação à China. Se tivermos em mente que a China é hoje o país dominante nas alianças internacionais que procuram alguma margem de independência em relação ao imperialismo norte-americano (BRICS+, Shanghai Cooperation Organization), é de prever que as democracias que integram essas alianças sejam alvos de destabilização política, muito especialmente o Brasil. Aliás, o regime change é uma estratégia desenvolvida desde a Guerra Fria e bem documentada no livro de Lindsey O’Rourke: Covert Regime Change: America’s Secret Cold War (Cornell, 2018). De facto, o regime change é apenas uma das estratégias utilizadas pelo império para interferir na vida interna dos Estados-súbditos, como bem ilustra o livro do ex-jornalista do Financial Times, Matt Kennard The Racket, A Rogue Reporter vs The American Empire (nova edição, Bloombury, 2024).Os sinais da preparação para a guerra.

Em 1931 pouca gente acreditava que pudesse haver uma nova guerra quinze anos depois de ter terminado a anterior. Mas o fascismo e nazismo cresciam nos países e na consciência dos europeus e com eles a lógica da guerra como solução radical dos conflitos. Em 1936, começou a Guerra Civil de Espanha e no fim dela (1939), com o triunfo do fascismo franquista, a guerra mais ampla surgia como algo inevitável. O mesmo se diga da II Guerra Sino-Japonesa, travada entre a República da China e o Império do Japão, de 1937 a 1945.

A preparação para a guerra começa nas consciências dos cidadãos. De repente, destacados políticos da “comunidade internacional” (isto é, os EUA e a União Europeia) começam a sugerir a ideia da inevitabilidade da guerra para defender os valores da civilização ocidental. Não se questiona sobre que valores são esses nem em que consiste a ameaça, mas a solenidade dos discursos sugere que a ameaça é séria e que há que agir rapidamente. Um ministro alemão afirmou recentemente que dentro de poucos anos a Europa estaria de novo em guerra. Tudo isto é afirmado com um tom de normalidade que banaliza os 78 milhões de mortos nas duas últimas guerras mundiais e os muitos milhões que morreram no conjunto das guerras que se sucederam em diferentes partes do mundo, e sempre com a intervenção activa dos EUA e dos seus aliados: Coreia, Vietnam, Indonésia, América Central, Argélia, Angola, Moçambique, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Iéemen, Sudão e Palestina. Surpreende igualmente que a ameaça nuclear, que durante décadas foi o grande dissuasor da guerra pela lembrança de Hiroshima e Nagasaki e pela imensa catástrofe que significaria, começa hoje a ser encarada como uma hipótese realista nos meios militares. Annie Jacobsen (a mesma jornalista que revelou a Operação Paperclip, o programa dos serviços secretos que trouxeram para os EUA os cientistas Nazis) acaba de publicar um livro muito revelador do que acabo de escrever: Nuclear War: A Scenario (Dutton, 2024).A escalada da guerra está em pleno desenvolvimento e é isso que me leva a alertar os jovens para a possibilidade de a Terceira Guerra Mundial estar próxima. Dois indicadores justificam o meu alerta. Por um lado, acaba de ser dada luz verde ao uso de mísseis e outro armamento, muito dele fornecido por países da NATO, para atingir alvos em território russo. Isto significa a transformação da guerra em guerra entre a Rússia e a NATO, ou seja, uma guerra entre potências nucleares. Por outro lado, o então secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, afirmou em Junho que a NATO tinha disponíveis 500.000 mil militares em alta prontidão para a guerra da Ucrânia. Acresce que em vários países, incluindo os EUA, se tomam medidas para tornar o serviço militar obrigatório ou para facilitar a decisão dos jovens de se alistarem nas Forças Armadas. A retórica para promover a guerra.

A retórica para promover a guerra passa por várias fases. Os senhores da guerra começam sempre por promover a guerra em nome da preservação da paz. Agravam as situações de conflito, justificando-as como medidas para travar o seu alastramento. Tomam medidas ofensivas, dizendo que são defensivas. Esta retórica serve para adormecer as consciências dos activistas da paz. Quando este objectivo é alcançado em grande medida, entra numa nova fase: a demonização e perseguição daqueles que permanecem firmes na luta pela paz. Repentinamente eles são desacreditados como estando ao serviço do inimigo, financiados pelo inimigo, traidores da causa patriótica do nobre esforço de guerra para preservar a paz e a civilização ocidental. O descrédito é seguido pela perseguição activa. Por outro lado, os lucros exponenciais das empresas de armamento passam a ser saudados como sinais da pujança da economia, quando antes eram pejorativamente considerados “os mercadores da morte” ou “war profiteers”.

No caso dos EUA, o país que desde a Segunda Guerra Mundial mais insistiu em fazer residir o seu poder no poder militar, mais que preparação para a guerra, assistimos a uma política de guerra limitada mas permanente sustentada por quatro pilares: as sucessivas derrotas nas guerras em que intervieram (Sudoeste Asiático, e Médio Oriente) são transformadas em vitórias através de uma massiva guerra de propaganda; a prioridade do bem-estar das populações é gradualmente substituída pela prioridade da segurança nacional que, aliás, tem uma dimensão externa e uma dimensão interna (os EUA têm 25% dos presos do mundo apesar de só terem 5% da população global); os orçamentos militares crescem exponencialmente e o seu crescimento nunca é questionado; finalmente, os processos eleitorais são manipulados para que os promotores do militarismo ganhem sempre as eleições.

Os interesses em promover a guerra. A guerra está ao serviço do capitalismo e do colonialismo sob múltiplas formas. Entre as principais, podemos distinguir as empresas de produção de armamento de guerra (a indústria militar dos EUA controla 45% do comércio global de armamento e os seus lucros subiram exponencialmente com a guerra da Ucrânia e a guerra de Gaza); o capital financeiro (a Ucrânia é neste momento o terceiro maior devedor do FMI); o acesso aos recursos naturais (cerca de 30% dos 33 milhões de hectares da riquíssima terra arável da Ucrânia, considerada o celeiro da Europa, é já propriedade de dez grandes empresas agroindustriais estrangeiras). Por sua vez, ao denunciar o genocídio de Gaza não podemos esquecer o projecto do Canal Ben Gurion, proposto na década de 1960 e hoje, de novo, na agenda dos senhores da guerra, um canal alternativo ao Canal do Suez e administrado por Israel e aliados. Este canal ligaria o golfo de Aqaba no Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo. Mais longo, mas com mais capacidade que o canal do Suez e além disso fora do controle egípcio (que no passado bloqueou várias vezes a passagem de navios de ou para Israel), este canal poderia ser uma alternativa à nova Rota da Seda da China. Inicialmente previsto terminar no Mediterrâneo num porto ao norte da Faixa de Gaza, tem-se ultimamente especulado que a limpeza étnica em curso podia, entre outras “vantagens” para Israel, limpar o terreno e encurtar a extensão do canal, atravessando o que é hoje a Faixa de Gaza.Dirijo-me aos jovens porque serão os jovens a carne para canhão da Terceira Guerra Mundial, por mais sofisticada que seja a alta tecnologia, o uso de cães robots e a Inteligência Artificial que forem utilizados. Lendo o diário de guerra de Curzio Malaparte, Kaputt, na frente alemã do leste e do norte na Segunda Guerra Mundial, uma das coisas que mais me impressionou foi a descrição dos exuberante banquetes dos generais e dos políticos aliados de Hitler, com as mais exóticas iguarias, os melhores vinhos e as mais elegantes mulheres, enquanto na frente da batalha os jovens alemães e seus inimigos morriam aos milhares, desertavam ou enlouqueciam, divagando pelas florestas sem destino nem futuro ou apenas esperando por uma bala misericordiosa.Para prevenir a eclosão da Terceira Guerra Mundial e dar esperança a quem tem medo dela é necessário incutir medo em quem a está a promover. O movimento pela paz, agora renovado pela luta contra o genocídio dos palestinianos de Gaza, é um sinal de esperança, mas não basta. A guerra resulta sempre de uma massiva manipulação do medo e da criação de condições de vulnerabilidade, de carência, de precariedade, de erosão de direitos sociais que atingem populações cada vez mais vastas. E resulta sobretudo da fragmentação das lutas que resistem a tudo isso. Quanto maior for a fragmentação mais invisível será o poder e a dominação e maior será o risco de as vítimas se insurgirem contra outras vítimas ainda mais vitimizadas, de os condenados da terra combaterem outros grupos ainda mais condenados da terra. A articulação das lutas sociais contra as três principais dominações modernas – capitalismo, colonialismo e hetero-patriarcado – é assim a condição necessária para a reconstrução de alternativas de paz, a paz que desta vez é pedida tanto pelos seres humanos como pela natureza. A condição suficiente é refundarmos as políticas de conhecimento e de educação de modo a que elas revelem o que designo por sociologia das ausências, o conjunto de alternativas anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais que proliferam no mundo.

Não carecemos de alternativas, carecemos de um pensamento alternativo de alternativas.

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