Na pesquisa realizada em Moçambique (na província do Niassa no Norte e na cidade de Maputo, capital) entrevistámos mulheres combatentes da luta de libertação e jovens nascidas depois da independência, maioritariamente nos anos 90, confrontando as suas percepções e representações sobre a participação da mulher na luta armada de libertação nacional e o processo posterior à independência em 1975.
Foram conduzidas Histórias de Vida a mulheres antigas combatentes, guerrilheiras, veteranas, e também a mulheres jovens da nova geração de mulheres feministas ou em organizações de mulheres não feministas. Pretendíamos conhecer as suas histórias de vida, a sua “chegada” ao feminismo e indagar sobre as suas relações com as chamadas “Libertadoras da Pátria Moçambicana”.
As informações recebidas durante estes diálogos têm sido bastante interessantes! Algumas têm Blogs feministas, criados e alimentados por si, outras chegaram ao feminismo através da discussão dos turbantes e cabelos, com uma grande influência dos debates no Brasil. Todas debatendo a sua posição sobre a mulher em Moçambique a partir das suas indagações com base em várias experiências pessoais e influências diversas. A maior parte tem contactos e participa nos debates e Fogueira Feminista do Movimento das Jovens Feministas Moçambicanas, MovFemme, sendo que uma delas praticamente não teve contacto por considerar que o MovFemme é constituído por mulheres académicas ou que passaram na academia, o que não é o seu caso.
Pesquisas sobre a participação da mulher na LALN em Moçambique
As pesquisas sobre a participação da mulher na luta armada de libertação nacional não são recentes. No caso de Moçambique antes e depois da independência em 25 de Junho de 1975, várias mulheres, inicialmente estrangeiras, pesquisaram e reportaram sobre esta temática. Algumas visitaram as zonas libertadas da FRELIMO durante a Luta Armada e relataram as suas impressões.
Eduardo Mondlane, primeiro presidente da FRELIMO, na sua obra Lutar por Moçambique, faz referência ao engajamento da mulher na luta contra o colonialismo e contra a dupla exploração a que está sujeita, articulando a investigação com a participação no processo de desenvolvimento de Moçambique, ao qual não é alheio mas sim um sujeito activo. Apresenta-nos a luta das mulheres como um desafio e uma tensão permanente entre as mulheres e os homens e entre as mulheres e a direcção da FRELIMO, luta que é ao mesmo tempo um indicador da transformação das concepções existentes e que a inferiorizam. Reconhece que a acção e agência das mulheres obrigou a FRELIMO a repensar-se e a reorganizar-se (Mondlane, 1996).
Mondlane relata neste livro o caso de uma mulher que se levantou num encontro orientado por Mondlane, perguntando por que razão as mulheres combatentes com as mesmas condições não podiam ser comandantes. Ao que Mondlane referiu não ter sido o caso alguma vez abordado pela direção da FRELIMO que o passaria a considerar.
O mesmo aconteceu na Guiné Bissau sob a orientação do PAIGC, nas palavras de Amilcar Cabral, seu primeiro presidente, assassinado em 1973: “ (…) Quando começámos com as bases da guerrilha, o Partido nunca chamou as mulheres. As raparigas é que se levantaram em grupos e vieram morar nas bases. “Nós também queremos lutar” diziam. Os pais reclamaram, os camaradas quiseram até correr com elas, mas resistiram e ficaram. Durante algum tempo, foi muito bom, mas depois apareceram problemas, porque os homens começaram a querer as raparigas e isso provocou disputas. O Partido teve então de organizar melhor a presença das mulheres na nossa luta. (…).
Há ainda dificuldades. Muitas pessoas têm de aceitar porque não há outro remédio. Mas temos notado em jovens cabo-verdianas que estudam em Portugal ou estão em Cabo Verde um entusiasmo crescente pelo Partido. Na Guiné, esse entusiasmo da parte das mulheres do campo foi uma das forças maiores da nossa luta. Houve áreas na nossa terra (há aí camaradas que podem dizer se é verdade ou mentira) em que os homens quiseram desistir, mas as mulheres passaram à frente e recusaram desistir. Podemos lembrar o exemplo concreto de Banta El Silá, que foi atacada e queimada. Houve gente que queria fugir, mas um grupo de mulheres resolveu fazer frente aos tugas, e algumas militantes do partido levantaram bem alto a coragem e o patriotismo do nosso povo. Portanto, o partido não pode fazer grande bazófia de que recrutou mulheres. Em geral, as mulheres é que vieram para a luta, o que dá muito mais valor à presença de mulheres no Partido.» (In: Fundação Amílcar Cabral. Amílcar Cabral, Seminário de Quadros, 1969. Acesso a 08/03/2018).
Samora Machel, que assume a presidência da FRELIMO após o assassinato de Mondlane em Fevereiro de 1969, desenvolve a sua visão sobre a participação da mulher e os seus desafios, na mesma linha que Mondlane, numa fase mais avançada da luta, no discurso que profere aquando da criação da OMM em Março de 1973, “A LIBERTAÇÃO DA MULHER É UMA NECESSIDADE DA REVOLUÇÃO, GARANTIA DA SUA CONTINUIDADE, CONDIÇÃO DO SEU TRIUNFO”. Paradoxalmente este discurso contém críticas ao movimento feminista, considerado um movimento ‘pequeno-burguês europeu’, que desvirtua o sentido da luta e da unidade e que poderia fomentar os conflitos entre mulheres e homens!
Qual a razão para fazermos referência à posição assumida pelos líderes do movimento de libertação nas antigas colónias portuguesas acerca da participação das mulheres e as concepções sobre a sua emancipação, nomeadamente Mondlane, Samora, da FRELIMO, Moçambique e Cabral, do PAIGC, Guiné Bissau e Cabo Verde?
Vivemos numa sociedade patriarcal até aos dias de hoje. Os movimentos de mulheres e feministas destaparam o véu sobre a opressão das mulheres desocultando as relações de género opressivas a todos os níveis, em todas as instituições, desde a família, passando pelas confissões religiosas. Muito se avançou, as Nações Unidas organizaram várias conferências focando na situação da mulher no mundo, instrumentos internacionais foram aprovados, bem como políticas públicas que têm em conta os direitos humanos das mulheres, foram aprovadas em vários países, revogou-se legislação contrária aos instrumentos internacionais, há hoje mais mulheres em cargos de tomada de decisão. Todavia, o mundo da política, da economia, da justiça, do militar continua a ser maioritariamente masculino, como nos tempos dos movimentos de libertação nas antigas colónias portuguesas. Apesar do papel crucial desempenhado pelas mulheres nesses movimentos – a sua participação em associações anti-colonialistas, a sua adesão aos movimentos de libertação, a sua participação e contribuição para alterar o patriarcado existente – esses movimentos continuaram a ser dirigidos por homens antes e depois das independências e ainda com pensamentos patriarcais. Em igualdade de circunstâncias não foi possível até 2015, nem em 2018, conseguir 50% de mulheres nos cargos de poder, de acordo com a decisão do Protocolo de Género e Desenvolvimento da SADC[2].
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* Docente e pesquisadora da Universidade Eduardo Mondlane, UEM, Centro de Estudos Africanos, CEA
** Graduanda em Ciência Política, Faculdade de Letras e Ciências Sociais, UEM Assistente da pesquisa “Diálogos em Confronto”.
[2] Este Protocolo aprovado e ractificado por Moçambique em 2008 refere no Artigo 5, que “os Estados Partes deverão decretar medidas de acção afirmativa, com referência particular às mulheres, tendentes a eliminar todas as barreiras que as impeçam de participar de forma significativa em todas as esferas da vida e de criar um ambiente propício a tal participação.”. No ponto 1 do Artigo 12 sobre Representação refere que “os Estados Partes deverão esforçar-se para que, até 2015, pelo menos 50% dos cargos decisórios nos sectores público e privado sejam ocupados por mulheres, incluindo, inter alia, o uso de medidas de acção afirmativa, tal como previsto no Artigo 5°.”.
Este artigo (aqui publicada sua primeira parte) é a versão resumida de um artigo apresentado no Colóquio Internacional DecliNações, Questionando identidades nacionais, género e sexualidade que teve lugar nos dias 29 e 30 de Outubro de 2018 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (no prelo).