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Camponeses de Riani, Ribáuè, limpando a terra para abertura de uma estrada | Ruth Castel-Branco

São cinco da manhã em Riani, Ribáuè, e uns cinquenta trabalhadores do Programa de Acção Social Produtiva (PASP) estão ocupados a reabilitar estradas antes da chegada das chuvas. Numa acção coordenada e ágil, homens, mulheres e crianças trabalham em conjunto, cultivando a terra para nivelar o solo, cavam as ervas daninhas e endireitam os caminhos. Chegam rapidamente a uma palhota de pau-a-pique construída no meio do que o Régulo afirma ter sido a rua original. Quando a aldeia comunal foi implantada, a rua ficou claramente demarcada, mas a guerra fez desaparecer os marcos. Através do PASP, o Régulo espera conseguir recuperar as ruas e introduzir alguma ordem espacial nesta agitada pequena cidade. De um golpe, a palhota foi demolida e o seu conteúdo empurrado para o lado, para a dona escolher e juntar quando regressar.

O PASP é um programa estatal de transferência condicionada de fundos para facilitar o consumo nas épocas de escassez do ciclo agrícola. Implementado pelo Instituto Nacional da Acção Social (INAS), é o único programa para adultos pobres fisicamente aptos. Em troca por trabalharem quatro horas, quatro dias por semana, quatro meses por ano, os “beneficiários” do PASP recebem um “subsídio” mensal de 1050 meticais. O raciocínio que sustenta esses salários ultrabaixos é que isso evita erros de inclusão (só se candidatam pessoas desesperadamente pobres) e reduz o risco de “distorções” no mercado de trabalho (melhores condições de trabalho para os trabalhadores agrícolas ocasionais). Embora esta lógica neoliberal tenha sido amplamente contestada, inclusive pela Estratégia Nacional de Segurança Social Básica 2016-2024, aprovada pelo Conselho de Ministros, considerações pragmáticas interromperam as tentativas de melhorar as condições para as dezenas de milhares de trabalhadores do PASP.

A “qualificação” é chave para o enquadramento do PASP. Teoricamente, através da participação no programa de três anos, os trabalhadores acumulam os activos, capacidades e conhecimentos necessários para aumentar a produtividade e os rendimentos, e qualificam-se para sair do programa. Embora discursivamente importante, dado que dissipa os receios dos decisores políticos de estarem a cultivar a preguiça e a dependência entre a “população”, foi um falhanço estrondoso – para desilusão dos trabalhadores do PASP que estão, também eles, desejosos de fugir ao trabalho manual da construção de estradas. O nível insignificante do subsídio, a ausência de formação e a falta de oportunidades no mercado de trabalho, asfixiaram as possibilidades de “qualificação” e, nalgumas áreas, o programa está no sexto ano de implementação.

Na verdade, as avaliações ao PASP e a transferências condicionais de dinheiro semelhantes, foram estrondosamente negativas. Têm altos custos de transacção devido aos insumos necessários (30% do orçamento do PASP vai para materiais e supervisão), baixa cobertura e impacto limitado. Dependem de financiamentos de agências de desenvolvimento internacional (um empréstimo de 50 milhões de dólares americanos do Banco Mundial) e, portanto, podem ficar reféns de condicionalismos movidos ideologicamente (subcontrato dos sistemas de pagamento). Elas aumentam o fardo do trabalho, particularmente para as mulheres que já têm de gerir responsabilidades produtivas e reprodutivas, reduzindo assim o tempo que as pessoas conseguem passar nas suas próprias machambas. E porque são realizadas com pouco apoio institucional, as infraestruturas são normalmente de má qualidade. Dadas estas limitações, por que não transformar o PASP numa transferência de dinheiro sem condições? Por que forçar as pessoas a trabalhar em obras públicas, em condições deploráveis? Por que não subsidiar actividades que os beneficiários já estão a realizar, como cultivar as suas próprias machambas?

 

Beneficiários do PASP, trabalhando em Riani, Ribáuè | Ruth Castel-Branco

A nível global, as propostas para um rendimento básico universal incondicional ganharam força ao mesmo tempo que académicos e activistas lutavam por um futuro sem trabalho, em que o progresso tecnológico substitui corpos humanos por robots. Perante este cenário apocalíptico, salários, lutas laborais e condições de trabalho tornam-se irrelevantes e o Rendimento Básico Universal (RBU) a salvação. Na África Austral, porém, o RBU começou por ser proposta pela Coligação dos Sindicatos Sul-Africanos (COSATU) como medida contra o fosso, em resposta ao desemprego estrutural e a uma protecção social inadequada. Os defensores argumentam que isto desliga a provisão de necessidades básicas da participação no mercado de trabalho, fortalecendo o poder negocial dos trabalhadores e condições de trabalho, ao mesmo tempo que habilitam os pobres a investir nas suas próprias actividades e compensando os que desempenham trabalho assistencial essencial não pago.

Enquanto os camponeses de Riani podem achar que um futuro sem trabalho é coisa de ficção científica, existe uma frustração cada vez maior, particularmente entre os jovens que terminaram a escola secundária, a propósito da ausência de oportunidades de emprego, explica Cremildo, de 24 anos de idade, um soldado desmobilizado:

Ninguém gosta da enxada; é só uma questão de sobrevivência. Os que dizem que gostam da machamba têm máquinas para lavrar a terra, ou dinheiro para contratar pessoas para trabalharem por eles. Não são camponeses, não são agricultores… é ainda pior para as pessoas que estudaram. Vês o teu colega a comer bem; e tu estás a lutar pela sobrevivência… A frustração, a ansiedade, podes ter uma trombose… no tempo de Samora estava-se bem, mas agora, sem dinheiro não vais a lado nenhum…. Magoa, magoa muito… Os jovens daqui precisam de trabalho… de outra forma, torna-mo-nos marginais, queimamos as infraestruturas, queimamos tudo.

Apesar da preocupação cada vez maior com o desemprego rural, ou talvez por causa disso, os decisores políticos nacionais, os funcionários dos governos locais, os membros das comunidades e os participantes do PASP, embora por razões diferentes, opõem-se fundamentalmente à ideia de um PASP incondicional. Os decisores políticos nacionais argumentam frequentemente que uma transferência de fundos incondicional promoverá a preguiça e a dependência, num contexto em que já há uma “ausência de uma cultura de trabalho” entre os pobres rurais. Este refrão comum – que serve para individualizar a pobreza e a riqueza (caracterizando os pobres como tendo falta de amor-próprio, motivação e inovação; e os ricos como trabalhadores incansáveis, transbordando iniciativa), abstraindo-se do processo de acumulação e desviando a atenção das falhas redistributivas do estado – tem as suas raízes numa construção colonial racializada do camponês que deve ser ensinado a aceitar o trabalho, se necessário pela força. A seguir à independência, o trabalho assumiu uma natureza colectiva e libertadora, justaposta contra as condições isoladas e alienadas do capitalismo colonial, para trabalhadores que podiam agora decidir colectivamente o que produzir, como produzir e para quem. O retorno do discurso da “cultura de trabalho” reflecte esta história cumulativa.

A nível local, poucos funcionários do governo se atreverão a sugerir que os camponeses que se levantam ao raiar da aurora para trabalhar as suas terras com uma enxada curta, sob um sol escaldante, são preguiçosos ou não têm uma cultura de trabalho. E, certamente, o valor do “subsídio” do PASP é tão insignificante e irregular que ninguém poderá vir a depender dele. Apesar disso, eles também se opõem a uma transferência incondicional porque, apesar das suas limitações, o PASP presta serviços valiosos. Os orçamentos para a manutenção das estradas terciárias são praticamente inexistentes e os líderes locais esforçam-se por mobilizar as comunidades para trabalhar gratuitamente, como já antes fizeram. O PASP garante assim que as estradas continuem transitáveis e os espaços públicos limpos. Os membros da comunidade respeitam o PASP por razões semelhantes. No passado, por exemplo, se uma mulher grávida queria agendar uma consulta no posto de saúde de Riani, ela tinha primeiro de cultivar a terra à volta do posto de saúde.

É interessante notar que a maior parte dos trabalhadores do PASP são ambíguos ou directamente avessos a um PASP incondicional. Enquanto uns sugerem que “seria normal”, muitos outros receiam as consequências sociais da transferência incondicional de fundos. “Mesmo a machamba, não podes ir lá, colher qualquer coisa sem primeiro lavrar, plantar, …”; “Vão-te apanhar e entregar à polícia”; “Muitas pessoas morrem por causa de magia. Toda a gente, aqui, é pobre. É difícil dizer que mereces ou não mereces isto. Mas, pelo menos, através das obras públicas, toda a gente beneficia directa ou indirectamente”. Se fosse simultaneamente incondicional e universal, porém, a maior parte dos participantes do PASP são a favor da ideia, pois reduziria o fardo do trabalho e permitir-lhes-ia centrarem-se nas suas próprias actividades, ao mesmo tempo que eliminavam uma importante fonte de tensão social.

No entanto, os participantes do PASP preferem que o estado melhore as condições de trabalho no PASP em vez de o transformar num rendimento básico universal. A maior parte tem orgulho no trabalho que faz e na sua contribuição para a comunidade. Alguns académicos alegam que esta ansiedade continuada por emprego reflecte uma grande falta de uma ordem social baseada no trabalho assalariado, que poderia ser substituída por outros modos de incorporação social, como o RBU. No entanto, em Riani, um lugar onde o emprego foi a excepção e não a norma, o desejo de emprego parece muito mais aspiração do que nostalgia. O emprego é visto como um meio para melhorar a própria vida, para fazer algo de socialmente útil, para contribuir para o desenvolvimento da comunidade e para ser socialmente reconhecido por isso. No fim de contas, diz o Régulo, “Aqui em Riani há muito trabalho por fazer”. A pergunta mais apropriada, ainda que mais difícil de responder, talvez seja não como o estado pode transformar o PASP em RBU, mas antes como pode converter um biscate num emprego propriamente dito. As duas perguntas não são necessariamente auto excludentes.

 

Ruth Castel-Branco é doutoranda no Departamento de Sociologia da Universidade de Witwatersrand, e associada ao Centro Internacional de Desenvolvimento e Trabalho Digno. Os seus interesses incluem movimentos sociais, direitos laborais, e instrumentos de redistribuição do excedente social.  É membro do Comité Editorial d´Alternactiva.

Edição: Boaventura Monjane