Talvez o deus da nossa mata esteja zangado connosco e cansou-se de nos proteger de tudo que entra em nosso espaço. Talvez tenha chegado a hora de seguir para a eternidade, de corpo nu e sem nada nas mãos. Uns olham isso como mata, mas nós tomamos tudo isso como sendo a nossa casa. Essas árvores que nos dão sombras e ar para respirar, fizeram o mesmo com os nossos antepassados que se foram com as correntes do tempo. Talvez tenha chegado a hora de seguir para a eternidade. Isso não é floresta, é nossa casa; não ardeu uma floresta, mas sim uma casa; uma casa com gente de carne e osso, gente que sabe amar o desconhecido, gente que foi trazida a vida pelo universo, gente que caminha descalça para melhor sentir o sabor da terra, do chão, gente que ama, gente que pensa, neste momento, que foi abandonada pelo deus da mata, gente que chora e sabe que fora dessa mata, que é nossa casa, há gente e há gente.
Não ardeu uma floresta, mas sim uma casa; ardeu e ainda arde uma casa que muitos não sabem que é casa. Há gente aqui. Há gente que ama e que pensa que chegou a sua partida à eternidade; há animais que se rolam na água e celebram a unidade com a mãe natureza, animais que vivem, aqui, sabendo que há, também, gente. Conto-vos agora a minha história. Não se trata de história, mas sim da fúria das chamas que me ficaram nos olhos e na leveza do coração. As chamas vieram gigantes como se tratassem de acrobatas de circos da cidade; equilibravam-se nas árvores, saltitavam sobre as águas como sombras de antepassados.
Minha família? Que família. Dela ficou-me apenas a cinza ainda quente. Ouvi vozes, senti o passo apressado das chamas e vi os corpos da minha família desfazendo-se em cinza. Não desapareceu uma família, mas sim elementos de um povo indígena qualquer que vive ao lado de bichos e animais, gente menor. Mas, há gente aqui. Há gente que ama e que pensa que chegou a sua partida à eternidade. Minha família reduziu-se a cinza. Quis chorar, mas com que olhos ia chorar uma família inteira que se foi à eternidade sem mim? Sou Índio e quando vim ao Mundo fui dito que minha casa era esta: ao lado da natureza, cruzando pegadas de animais, andando de peito nu, amando tudo que aqui existe e bebendo o cheiro das nuvens pelos copos líquidos da chuva.
Talvez seja devastação ilegal, chamas, aquecimento global, mas devo dizer aqui é também uma casa com gente de carne e osso, gente que sabe amar o desconhecido, gente que foi trazida a vida pelo universo. Minha família reduziu-se a cinza. Peguei as cinzas como as mesmas mãos que tocava os cabelos dos meus filhos e a mão da minha esposa. Estavam todos juntos: cinza conjunta e misturada.
– Coitado dos Índios!
Que coitado dos Índios! Nós não somos gente, não temos família. Sintam pena da nossa mata, dos nossos rios e dos nossos animais que connosco viviam em paz. Sintam pena das cinzas que não tiveram que as apanhar e juntá-las nas mãos como nos sentávamos para raspar as nossas cabaças. Sintam pena das chamas que ninguém debelou e não das vidas apagadas.
– Coitado dos Índios!
Talvez tenha chegado a hora de seguir para a eternidade, de corpo nu e sem nada nas mãos. Seguir com cinzas quentes e nada mais. E pisar outras cinzas que não tiveram quem as podia esconder entre os dedos. Por que não sentir pena de animais que foram engolidos pelo desequilíbrio ambiental, a caça e pesca predatória, a poluição do solo, do ar e da água e as alterações climáticas? Sintam pena dos animais espalhados e carbonizados.
Há gente aqui. Há gente que ama e que pensa que chegou a sua partida à eternidade e o que queremos é que saibam disso. Não queremos reconhecimento, apenas que saibam que aqui há gente em tribos, gente que pesca, caça e cultiva seus próprios alimentos e tem cinzas nas mãos.
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* Sérgio Raimundo é licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Universidade Eduardo Mondlane. Consultor linguístico e escritor, é membro do Comité Editorial d´Alternactiva.