Através da instrumentalização da CNE e do STAE, e do desmembramento da Renamo, a Frelimo pode desde já cantar vitória. A organização da consulta foi viciada desde o recenseamento, notoriamente em Gaza, o tradicional bastião da Frelimo, onde o número de eleitores foi largamente inflacionado. A fraude foi exposta pelo Centro de Integridade Cívica, que aponta também graves atrasos no recenseamento a nível nacional, que poderão deixar mais de 10% da população fora dos cadernos eleitorais.
A isto haverá que acrescentar uma taxa de abstenção certamente muito elevada. Neste momento, decorrem em simultâneo dois conflitos armados distintos no território nacional. Tanto os “insurgentes” (no Norte) como os “rebeldes” da Renamo (no Centro) têm um sinistro historial de ataques a civis, e isso dissuadirá certamente muitos cidadãos de se meterem à estrada para irem votar.
E votar em quem, e porquê, se os partidos concorrentes são ideologicamente iguais? Frelimo, Renamo e MDM, as três forças que actualmente contam no leque político nacional, são todas neo-liberais, tão semelhantes que nem sequer discutem política. Os candidatos não dizem concretamente o que tencionam fazer na Saúde, na Educação ou no Ambiente, como vão gerir as bolsas de estudo, quanto vão investir em transportes públicos ou habitação social, como vão resolver as questões agrárias… Nada. Os debates são preenchidos por auto-elogios e promessas gastas em que já ninguém acredita.
Neste contexto político, é gritante a ausência de um partido (ou movimento, ou coligação…) com vocação social, que avance alternativas concretas à profunda miséria em que vive a maioria dos moçambicanos. Moçambique precisa de quem dê voz àqueles que a não tem, e que se erga contra a desumanidade das políticas ultra-liberais e a submissão aos imperialismos, impondo uma divisão justa dos imensos lucros da exploração dos recursos. A ausência de alternativas ideológicas torna a consulta eleitoral politicamente redundante.
Apesar de a data ser a pior possível, o Governo aplicou-se a observar a periodicidade estabelecida pela Lei, empenhado em exibir uma “legitimidade” que não tem e uma “normalidade” que não existe no país.
O desfecho foi acertado nos bastidores do último e caloroso acordo entre Filipe Jacinto Nyusi e Ossufo Momade. A Frelimo será o Governo e a Renamo será a Oposição (devidamente apoiada, a esse título, pelos cofres do Estado). Já assim era desde o Acordo de Roma, e assim continuará a ser. Para a Renamo, incapaz de se afirmar como oposição credível no Parlamento, antes esse estatuto (e as inerentes mordomias), que nada. Pelo menos para Momade e a cúpula política, em Maputo. Mas enquanto Momade engorda, as bases, “no mato”, sentem-se traídas, e já recomeçaram os ataques a civis, retomando as piores tradições da velha Renamo.
A necessidade de manter a segurança no Centro vem agravar ainda mais a dificuldade em impor a paz no Norte, onde os ditos “insurgentes” prosseguem as agressões contra a população civil, perante a apatia e a inépcia do exército e da polícia. Os “insurgentes” agem em aparente liberdade, e nem sequer foram oficialmente identificados.
De início, os media, por indigência intelectual, apressaram-se a atribuir a autoria dos desmandos a “extremistas islâmicos”, nomeadamente à Al Shabab. Porém, a comunidade islâmica condenou os ataques e distanciou-se de qualquer ligação aos atacantes. Os cristãos também não se assumem como alvos específicos da “insurgência”, e recordam a excelente harmonia inter-confessional que sempre se viveu no país.
Quanto ao Governo, nunca apontou culpados, nunca identificou os “insurgentes”, mas é inverosímil que nada saiba. Porque mantém o silêncio? Para não hostilizar os prováveis mandantes?
É interessante observar como o padrão da “insurgência” em Moçambique segue de perto o que se registou em numerosos países onde os Estados Unidos têm interesses ligados aos recursos energéticos. Resumidamente, fomentam a destabilização e geram um caos que depois usam como argumento para justificar a intervenção militar ocidental. Receio que Moçambique esteja a entrar num turbilhão semelhante.
A insistência em levar Manuel Chang a julgamento nos EUA, que só pode resultar na exposição pública da corrupção do governo Frelimo, pode ler-se como um gesto do desamor Washington – Maputo. No caso do Iraque, os USA tiveram de inventar armas de destruição massiva para explicarem ao mundo porque invadiam o país; no caso de Moçambique (insuspeito de possuir armamento nuclear) os corporate media não precisam de inventar nada para provarem a podridão do regime.
O absoluto descrédito internacional do Governo desde a descoberta das Dívidas Ocultas, aliado à comprovada incapacidade das forças militares e policiais para manterem a paz e a segurança, são argumentos que o Governo (realmente corrupto e incompetente) dá de bandeja a quem queira mostrar que o país está em desgoverno total e necessitado de uma intervenção armada que “ponha a salvo” as fontes de energia vitais ao Ocidente.
Já vimos os anteriores episódios da série (no Iraque, Líbia, Síria…), e sabemos que acabam sempre em catástrofe. Uma agressão directa do imperialismo resultaria em gigantescas perdas humanas e materiais e poderia, inclusive, levar à divisão do território em dois (ou três) estados… Esta é a herança que a Frelimo receberá da Frelimo quando forem anunciados os resultados da fraude eleitoral. Nyusi sucederá a Nyusi e continuará a empurrar os problemas com a barriga, indiferente ao sofrimento do povo, enquanto Moçambique se vai afundando e desagregando.
O panorama é decepcionante, mas há que tirar lições. Começando por um balanço dos 27 anos da Segunda República, é fácil constatar que, em milhares de horas de debates parlamentares, a classe política se mostrou incapaz de trazer melhorias ao país (embora lhe pese no Orçamento, em honorários e benesses). Obviamente, a existência deste parlamento decalcado da Europa não tem garantido uma democracia real e eficaz em Moçambique. Assim, no contexto viciado da Assembleia da República, não há nada de bom a esperar da próxima legislatura.
Felizmente, há mais política além das eleições. Os últimos anos têm testemunhado o surgimento de numerosas organizações e media especificamente vocacionados para lutas sectoriais em áreas como a igualdade de género, a propriedade da terra, o controlo orçamental ou a defesa do Ambiente. Designadas pelo nome genérico de “Sociedade Civil”, são coordenadas por mulheres e homens jovens, sem compromissos com a cleptocracia e bons conhecedores dos dossiers que trabalham.
As suas campanhas encontram eco numa parte crescente da população urbana, descontente com o rumo do país, descrente dos partidos existentes e dos políticos profissionais, e ansiosa por um futuro melhor. São essas organizações que vêm sistematicamente denunciando erros e abusos nas respectivas áreas, apontando causas e causadores, sugerindo alternativas… Em resumo, fazendo política.
* José Pinto de Sá é Jornalista, tradutor e ficcionista.