Alternactiva

Tudo começou no facebook quando um amigo postou as fotos das suas duas meninas com todo o orgulho de pai. Entre comentários de felicitações, dois chamaram-me atenção: (i) “só tens meninas? kakak”; (ii) “tens que vir ter comigo para te ensinar a fazer rapazes”. Parei, respirei fundo e questionei-me: o que se passa aqui? Foi quando de imediato lembrei-me do Presidente brasileiro, Bolsonaro, quando numa das suas tantas bizarras entrevistas alegou que deu uma fraquejada quando se referia ao nascimento de uma filha. Isto despertou mais a minha atenção em relação a como a masculinidade hegemónica é construída e se faz existir. Chamou-me mais atenção, ainda, o valor, significado e o lugar socialmente construído e constituído para a mulher.

Como formador nas áreas de violência baseada no género, saúde e direitos sexuais e reprodutivos e masculinidades, resolvi levar o assunto para o debate. Em um encontro realizado há um mês, iniciei a sessão querendo saber do que os participantes, todos homens, pensavam sobre os diferentes assuntos. E imediatamente coloquei a seguinte afirmação: “Homem que só faz meninas é um ‘fraco’”. Pedi que quem concordasse se posicionasse de um lado e quem não concordasse fosse para o outro. As reacções foram previsíveis e surpreendentes. Em uma sala de 28 homens, 24 concordaram, 3 discordaram e 1 escolheu o centro que era de certa forma o lugar da indiferença. Gostaria de ter uma sessão igual com grupos mistos. Seria interessante ouvir a voz das mulheres.

Comecei colhendo as opiniões das pessoas que concordavam com a afirmação. Os argumentos foram mais ou menos estes: (i) “o homem é forte; deve fazer outros homens para mostrar que é forte”; (ii)“um homem tem que ter homens, aí garante a continuidade da família, o apelido não morre”; (iii) “o verdadeiro filho da casa é o homem, a mulher levam, pertence as outras famílias, o homem é que vai me ajudar”; (iv) “senhor formador, é a mulher que vai carregar o meu caixão?”, dentre outros argumentos. Imediatamente dois elementos nos sobressaem a partir destas falas (i) a hipervalorização do masculino; (ii) e também que a masculinidade não é apenas biológica, mas social, assim sendo, tem que estar em exercício, ou seja, os homens têm que ser “sujeitos em exercícios da masculinidade” (GOMES, 2012). Este exercício não só demarca a diferença, como também exclui, desvaloriza, humilha, controla, violenta, mata.

O ponto alto do debate surge quando fui ao centro e perguntei ao único homem sobre as razões de estar no centro. Com uma voz baixa, tímida, humilhada, ele responde: “eu estou aqui, mas o meu coração está mais para o lado dos que concordam. Resolvi parar no meio porque sou pai de 5 meninas, não tenho nenhum rapaz, sempre que tentava fazia outra menina, resolvi parar, me sinto fraco, não me sinto homem de verdade. As pessoas no meu bairro dizem que não sou homem”. Foi um momento difícil para mim como formador. O exercício da masculinidade é cruel, com consequências drásticas para as mulheres mas não poupa a nós os homens.

Enquanto o homem falava eu pensava; como é para ele estar em um circuito que lhe transmite estas mensagens? Como foi a situação da mulher? Será que não teve os seus direitos reprodutivos violados por este homem que queria a todo custo ter um rapaz? Como é que este homem lida com estas meninas, suas filhas? Será que elas têm o cuidado, a protecção, oportunidades, o amor que mereceriam se fossem rapazes? E também pensei, realmente a base da violência contra as raparigas e mulheres está em casa, se dentro do espaço familiar a menina já é tida como um corpo de segunda categoria, descartável, não merecedor de valor, a esfera pública apenas vai continuar a propagar isto. Por isso pais, valorizem as vossas filhas, amem a elas, empoderem-se e empoderem a elas.

Continuando. Dei um suspiro e perguntei: como o senhor se sente diante de tudo isto? Ele respondeu, “é isso nem, é difícil, não tem como me sentir bem”. Imediatamente vejo uma mão levantada do lado dos que não concordavam e passei a palavra. O senhor diz: “colega, é o seguinte, a fraqueza de um homem não está apenas em fazer filhos (meninas e/ou meninos), mas, na incapacidade de gerar filhos”. Ou seja, a ideia da virilidade apenas rima mas não caminha com a esterilidade. Enquanto escrevo penso: nós os homens precisamos de terapia. O exercício da masculinidade é mesmo cruel.

A discussão foi se ampliando e foi quando decidi fazer um experimento contrário. Consultei a todos se seria fraqueza se este homem ao invés de 5 meninas tivesse tido 5 rapazes? Choquem-se: não, pelo contrário, esse sim, esse é homem. Esse sabe como se faz o trabalho.

Em seguida um senhor idoso diz: “nem é tanto saber como se faz o trabalho, há um segredo, só que as pessoas não sabem, para fazer filhos homens, você tem que ter relações sexuais sem demorar, não pode deixar a mulher ter orgasmo, o homem tem que ejacular logo e terminar. Se ela tiver o orgasmo primeiro, pronto, não vai ter menino, vai sair uma menina”. Sinto-vos, sinto o que sentem, eu queria também não ter ouvido isto, eu queria que isto fosse invenção. O pior de tudo é este homem teve pessoas que concordaram com o seu posicionamento; o que implica que é uma crença colectiva. Negar o prazer feminino, negar o orgasmo da mulher por conta do prazer exclusivo masculino e a pretensão de ter homens. Há um caminho longo companheiros e companheiras.

E esta é a nossa sociedade, a sociedade dos homens, a sociedade que quer homens, a sociedade que descarta a mulher, a sociedade que constrói sujeitos masculinos e objectos femininos. É uma sociedade que devia envergonhar-se de si mesma, é uma sociedade que devia mudar. Enquanto a hipervalorização do homem continuar, continuaremos a ter corpos para a morte, a Sepúlveda vai sair para o hospital e será violada e morta, a Michele estará em casa com o namorado e vai ser encontrada morta de forma bárbara, a Sabina vai estar de viagem a Cuamba, será dada por desaparecida e vai ser achada em um rio, morta, depois de violada. Sonhos vão sendo interrompidos precocemente, afinal, estas, são as feitas para morrer, pois, não têm controlo sobre as suas vidas e seus corpos, estas, estão sob o controlo dos homens, seja quem for, são a carne mais barata.

Manter a hipervalorização dos homens em detrimento das mulheres, é continuar a afiar a espada e a ter a arma apontada contra as mulheres, é continuar a dar aos homens o poder de decidir se deixam viver ou deixam morrer, e de que forma podem matar. Isto não é justo. Isto não pode continuar.

Mas por outro, é continuar a produzir corpos masculinos doentes mas que assim não se sentem, vulneráveis mas que não se reconhecem, cansados e fragilizados mas não se apercebem, angustiados e desesperados mas que não aceitam-no, afinal, são corpos construídos para serem fortes, seguirem firme, sem sentir e muito menos se deixar sentir.

Eu deixei um recado naquela sala e que deixo para todos, pois sei, não é um cenário isolado, não é só um assunto das 28 pessoas que estiveram lá comigo. Dentro do meu circuito familiar tenho um primo que está frustrado porque está agora com a terceira criança: uma menina. É um jovem, com formação superior e urbano, só para não pensarem que o problema é dos outros e estes outros são rurais e não escolarizados. O machismo desfila em tudo que é canto. Um cenário similar repetiu-se com um amigo que teve uma segunda menina, na conversa no meio de outros amigos era tido como fraco que ainda não teve rapaz, ele queria que fosse um rapaz.

Homens, pais, amem as vossas filhas. Homens, nós não precisamos de ter rapazes para sentirmo-nos homens, nós não precisamos de raparigas para sentirmo-nos homens, nós não precisamos de ter filhos/as para sentirmo-nos homens, nós não precisamos de nada para sentirmo-nos homens. Tiremos esse fardo de nós. Ninguém vai afastar este cálice se não formos nós próprios. Sintamos a leveza de viver sem estes fardos sociais.

Homens, pais, se a vida deu-nos, dá-nos ou for a dar-nos o dom de gerar uma vida, amemo-la. Amemos o rapaz que nasceu. Amemos a menina que nasceu, abracemo-la, celebremos, acarinhemos esta menina. Esta menina somos nós, é você, sou eu reflectido num outro ser. Como posso ser tão cruel comigo mesmo a ponto de não amar o eu que se formou num outro em mulher? Como posso ser tão cruel comigo mesmo a ponto de não amar o ser mulher que o universo possibilitou que fosse gerado a partir de mim? Como?

Eu e você podemos até ser bons pais para as meninas, podemos oferecer toda a protecção, podemos fornecer a melhor educação e desejar que elas voem pelo mundo, mas enquanto permanecermos com a hipervalorização do homem, não teremos rompido com o moínho que vulnerabiliza, silencia, violenta, mata as mulheres.

Sobre o Autor

*Membro do Comité Editorial d´Alternactiva. Coodenador da Men Engage Africa para área da Juventude em Moçambique; Coordenador Provincial da Rede Hopem, Nampula.