Alternactiva

João Bata

Ao primeiro minuto, o baterista invoca à santidade. As três primeiras “bateradas”, antes da voz, da guitarra, do piano, do baixo, lembram-nos a eterna missão de, sempre no início de cada oração, invocarmos à santíssima trindade. Num ritmo inconfundível – de magikha à makwaio – João Bata introduz-se nas ferozes rimas do baterista, desta vez acompanhado pelo piano e trompete (?), pregando o evangelho.

A voz, a respiração, o “hit” encaixam quão luva numa mão feminina – resplandecente e apaixonante. E por falar em mulheres, há aqui um romance, um coito, uma harmonia entre os instrumentos. Enquanto o teclista deleita-se e explora as notas do guitarrista numa cumplicidade de se invejar, a orgia é feita, todavia, na voz, bateria, percussão e baixo que, sem dar de cara, curtem o mesmo momento. Paixão!

O baterista demarca os territórios da voz, fechando as rápidas respirações; a percussão completa os momentos mais intensos em que a música ganha outra roupagem, outra história; o baixo, sem exageros, dialoga com a bateria, às vezes a cobrar o seu espaço.

A energética música MATSALWA abusa dos intervalos e é um dos seus pontos altos, onde Bata ressuscita com vigor sem se comprometer com nenhuma tentativa de emular a si mesmo. A música tem o espírito contestatório e descreve um mundo sem piedade, mas do ponto de vista de um velho-senhor experiente que sabe que, apesar de já ter vivido de tudo, sempre está aberto a descobrir o que vem por aí.

Não é novidade para ninguém o misticismo presente nas melodias de João Bata, e ele continua em grande escala aqui (um dia falaremos de Nguana). Talvez a diferença seja a intensidade com que ele mescla o velho com o novo ou como as paisagens sonoras se expandem e ficam mais dramáticas. Seja como for, é notável a percepção de como a banda se preocupa mais com a atmosfera do que com as notas e a execução em si.

Tudo para criar um cenário propício para as mensagens espirituais dele, que faz questão de se auto referenciar. MATSALWA, por exemplo, é primorosa. A voz está segura e confiante, o som invade o cenário e casa-se com a melodia até tudo explodir num refrão que alivia a tensão e resolve a harmonia com inteligência e bom gosto. Teclado e guitarra sintetizados dominam o “hit”, e a as batidas da bateria e percussão também adicionam drama ao caldo.

Em voz baixa, MATSALWA transborda ansiedade. É uma deliciosa e irónica correria melódica que traduz ritmicamente a loucura que é viver nos dias de hoje, e ele desaba num final dramático: “Venha libertar-nos Senhor do pecado que existe na terra”.

Bata parece, aqui e é, angustiado para falar logo algo antes que ele próprio exploda em desespero. Em quase seis minutos de duração, a música vislumbra valores do tempo e do espaço e revela uma surpreendente reiteração enunciativa apropriada ao discurso programático das igrejas e seus pastores em nos mostrar as (suas) verdades. <<É mania deles estarem diante do Senhor e pregarem o evangelho. É mania deles dizerem que os mortos irão ressuscitar>>.

E ousando mais, mas mais do que isso, rasga sua própria alma pra todo mundo ouvir sem amarras e sem medo de exagerar na dose. Não que não nos interesse a verdade. Não! O problema – tal como questiona no segundo momento da música – é: por que não ouvir as preces dos que diariamente ajoelham na sua presença Senhor!? Fala-se concretamente de todos: até dos mais espertos ladrões.

Aqui cai por terra o clichê segundo o qual os artistas utilizam seus dramas pessoais como inspiração para fazer música. Pode até ser verdadeiro na medida em que ela acende um holofote em seu próprio caos, mas o resultado sonoro é avassaladoramente mais glorioso do que qualquer clichê. E não se engane: Matsalwa não tem nada disso. É intenso, e de um jeito bem original.

E a visão é única: poucos artistas conseguem isso. Só quem já adquiriu muita experiência sabe transformar os calos da vida em sons como estes sem cair no mais do mesmo.

Por isso, Bata é, sem sombras de dúvidas, um romancista perdido na música. Perdido? Talvez não seja uma perdição. Se calhar um tonto que dribla à sua maneira. E não é para menos! Ao minuto dois na música, aparece-nos a implorar casamentos. Colectivos, individuais não interessa.

Case-se! Trabalhe e case-se, diz repetidas vezes para <<ver se deixas de ser alimentado feito um pinto>>. Sarcástico, velho paulado, João Bata associa a “solterice” de Guluva (sublinhe-se, todos os Guluvas) à matrequice, falta de lata, tanto é que exorta a <<procurar uma viúva no domingo e ir com ela apresentar-se na campa do falecido>>.

Essa evidência fica exaltada quando, no mesmo “período” da música, o artista contextualiza a questão dos mortos que ressuscitarão. Quer dizer, <<os que se apoderaram das esposas dos outros o que dirão ao ressuscitados?>>

Meia volta, sem dar respostas e nem sugestão, Bata leva-nos a outro passeio. Volta no tempo e resgata as tristes memórias de 2000. Mas, embora o peixe sai da água pela boca, o que se viveu naquele ano carece de misericórdia divina. Morreram pessoas; ricos ficaram mais ricos com a comida dos pobres.

Por isso questiona: por quais bandas andas Jesus? De que lado estás? Nos pobres, nos ricos ou nos ladrões?

Com certeza, a resposta é uma grande surpresa que pode ganhar mais nuances com o passar do tempo. E que no final de tudo reverbera somente o pedido de que tudo é utopia.

 

Reinaldo Luís é jornalista e editor de cultura.