
O mundo é afectado desde finais do ano passado pelo coronavírus, e como resposta ao mesmo, os países adoptaram uma série de medidas preventivas visto que ainda não existe cura para esta pandemia. Moçambique, por via do Decreto Presidencial número 11/2020 de 30 de Março, declarou o estado de emergência com vista a fazer face a esta pandemia. Este decreto regula o funcionamento das instituições, sejam elas a família, as instituições do Estado e privadas. As regras gerais são o confinamento, distanciamento social e medidas severas de higiene e higienização. Ora, essas regras têm tido vários tipos de consequências e respostas por parte da sociedade. Para muitas pessoas o confinamento e o distanciamento social têm sido bastante difíceis dado ao contexto que não permite que tal aconteça. Por exemplo, os que têm que se deslocar de suas casas para o trabalho diariamente, enfrentam a velha problemática de falta de transporte, o que os coloca numa situação de vulnerabilidade para a contracção do vírus dado a impossibilidade de manter a distância aconselhada que é de 1.5m. Pensemos no transporte
mylove onde as pessoas não têm alternativa se não tocarem-se umas às outras, sob risco de caírem durante o percurso se não o fizerem. Este é apenas um exemplo de tantos que mostra a dificuldade do cumprimento na integra do decreto referido; estas pessoas são as que têm, obrigatoriamente, que ir à busca do sustento diário, aquelas que ganham dia-a-dia para viver dia-a-dia (Santos: 2020). Existem, porém, outros vastos grupos impossibilitados de cumprir com o decreto e necessitando de acções do Estado para reduzir, ao mínimo, os riscos de contágio. Tais grupos compõem aquilo que Boaventura de Sousa Santos chamou de Sul. Para Santos, o Sul não designa um espaço geográfico; designa um espaço-tempo político, social e cultural. É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual. É preciso reflectirmos sobre como estes grupos (deficientes, vendedores ambulantes, crianças moradoras de rua, prisioneiros, etc.) beneficiam-se das acções do Estado para prevenir a COVID-19, dado a extrema vulnerabilidade a que estão sujeitos. É impensável para um vendedor ambulante a ideia de distanciamento, pois é justamente na aproximação social que reside a “alma” do seu negócio, trabalhar a partir de casa como pressupõe o decreto, sem no entanto haver medidas concretas para a sua efectivação, como por exemplo uma cesta básica mensal, é arremessar pedras para a utopia; a resposta que decerto disso advirá é que se trata de desobediência às regras. A probabilidade desses vendedores ignorarem o decreto e irem à busca do sustento é maior, pois preferirão correr o risco de contrair a doença que estar livre dela, no entanto passando fome.Ora, a desobediência não só se verifica no sul. Um pouco por todo País, ficamos a saber dos meios de comunicação social que muitas pessoas, particularmente jovens, têm se feito à rua, aos conviívios sociais, aos restaurantes, aos bares e às barracas, negligenciando escancaradamente o que pressupõe o decreto. Perante esta situação, a polícia tem engendrado acções com vista ao restabelicimento da ordem por via de detenções dos infractores. Destarte, mesmo com esta acção da polícia, vulgarmente conhecida como O
peração Mahindra, a desobediência não cessa, a avaliar pelos números de detidos que têm sido apresentados pela polícia.Esta situação coloca-nos a reflectir sobre as possíveis causas dessa desobediência no contexto da crise causada pela COVID-19.O Instituto para Democracia Multipartidária, uma organização da sociedade civil moçambicana, elaborou um relatório referente à monitoria da segunda fase da implementação das medidas do estado de emergência no âmbito da COVID-19; entre diversos aspectos faz uma análise ao relaxamento na implementação das medidas mencionadas, constatou que o relaxamento deveu-se à fraca fiscalização por parte das entidades governamentais com essa responsabilidade, pois para o instituto não basta criar medidas, é preciso criar condições para que as mesmas sejam cumpridas com eficácia. Embora seja uma asserção valida, é preciso olharmos para a sociedade de forma holística, percebendo a forma como ela está estruturada. As desigualdades acentuadas que caracterizam a sociedade são condições
sine qua non para ler a desobediência e a dita
Operação Mahindra. Moçambique é um daqueles países cuja desigualdade social é bastante visível e acentuada. Existe, por um lado, uma pequena elite bastante rica e, por outro, uma esmagadora maioria bastante pobre vivendo com menos de um dólar por dia, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2019. Estas desigualdades produzem determinados tipos de consciência nos dois pólos.Segundo Tulving (1985),
apud Queiroz (2001), existem três tipos de consciência: a consciência noética, que privilegia uma atenção às representações simbólicas do mundo; a consciência anoética que é uma atenção simples a símbolos externos e a autonoética que se desenvolve com base na auto-experiência estendida no tempo.Para esta análise, o nosso foco incidirá no primeiro e segundo tipos de consciência porque julgamos mais elucidativos relativamente ao último.Os dois pólos, o dos ricos e dos pobres, produzem os dois tipos de consciência ora mencionados, no entanto a nível da noética as representações simbólicas do mundo são captadas com lentes diferentes e desiguais, justamente pela posição que cada pólo encontra-se. Por exemplo, questões como risco, medo e incerteza são percebidos de maneiras extremamente diferentes entre esses dois pólos.Ulrich Beck, sociólogo alemão, escreveu uma célebre obra intitulada
Sociedade de Risco em 1986, onde mostra nitidamente que a questão do risco e suas consequências, por exemplo, é socialmente construída e é entendida consoante a época histórica, ao contexto cultural e ligado à estrutura social em que ocorre.Portanto, faz sentido aventar a hipótese segundo a qual a COVID-19 entendida como um risco, vista sob lente dos pobres; maiores são as probabilidades dela ser suavizada na medida em que estes veem lutando para sobreviver das várias “pandemias diárias” a que estão sujeitos. Nesse sentido a COVID-19 seria vista, nesta perspectiva, como mais um problema. Diferentemente dos ricos que não têm enfrentado desafios diários de sobrevivência, sendo por isso vista, neste pólo, não como mais um problema, mas como um grave problema. Outrossim, ainda segundo Beck (1986) em sociedades de risco o individualismo acentua-se, por isso é normal que numa situação pandêmica, como esta, em que a protecção individual é proporcionalmente solidária a outrem, haja
mahindras a perseguirem e prenderem quem não se auto-protege ficando em casa, pois o sentido de solidariedade nestas sociedades é deveras reduzido. E aqui é importante salientar que o mesmo Estado, que em resposta à COVID-19, libertou alguns prisioneiros devido a superlotação e ainda anda em rusgas para prender quem não tiver máscara na via pública.Uma outra situação que pode ainda ser elencada, está ligada às medidas discriminatórias que são aplicadas pelo Governo aos dois pólos. As pessoas que têm sido detidas por desobediência são, na maioria, jovens pobres encontrados a beber fora de casa, no entanto temos por outro lado restaurantes-bares lotados de gente consumindo álcool e ninguém é detido. Isto agudiza a percepção dos pobres sobre o risco não ser na verdade risco em si, mas mais um, para os pobres e seus ambientes. Propiciando desta feita mais
mahindras, e mais jovens desobedientes. *André Cardoso
Rapper e activista social