Todos vimos o que aconteceu. Todos temos visto o que vem acontecendo. Durante anos. Décadas. Séculos. E ainda ficamos sem palavras diante da história que se repete. Não temos palavras. Não sabemos o que fazer. Não sabemos como desmantelar aquilo que criamos e do qual nos beneficiamos por tanto tempo. Por gerações. Não sabemos como de fato nos articulamos com nossa própria comunidade branca. Não sabemos como falar com eles. Não sabemos como usar de forma respeitosa nossa voz na luta contra a injustiça racial. Não temos a menor pista. Seja lá o que (não) estamos fazendo, nós falhamos. E o pior é que, uma vez mais, mais um negro precisou ser morto pela polícia para que sejamos forçados a olhar para isto. Como uma pessoa branca, que faz parte da academia, hoje me sinto destituída de poder e capacidade de ajudar. Me sinto impregnada de um profundo sentimento de ódio voltado a mim mesma, causado pelo fato de que os perpetradores de crimes raciais tem sempre a mesma cor de pele que a minha. Como lidamos com o fato de que sempre nos parecemos com os assassinos? Como vamos encarar a herança da branquitude? Como podemos nos libertar do que significa ser branco neste mundo?
As origens da violência brutal perpetrada pela polícia de Minneapolis remonta à fundação deste país. Pode-se argumentar, inclusive, que a polícia norte americana é uma instituição – assim como muitas outras – genealogicamente vinculada com a escravidão e o capitalismo racial. Os primeiros formatos de modelos policiais foram, na verdade, milícias privadas com a tarefa de proteger a propriedade privada de brancos – a terra e os escravos. Estas patrulhas privadas tinham, então, a função de vigiar as “plantations” e devolver os escravos em fuga para aqueles que se auto denominavam como seus senhores. Vivos ou mortos. As “plantations” foram, desde sempre, o campo de treinamento da polícia norte americana. Esta é a razão pela qual a genealogia da força policial é extremamente relevante neste contexto. Ela explica, de maneira bastante clara, a evolução destas patrulhas de escravos para a polícia em sua forma institucional e o papel que o racismo desempenhou na origem da força policial e em seu processo de transformação: de guardas privadas em defesa da branquitude para uma instituição de dentro do Estado. Ao destacar este aspecto, podemos compreender, ainda que só com este exemplo, como funciona o racismo institucional e o quão prevalente são seus efeitos materiais e simbólicos. O racismo é um traço constitutivo das sociedades do Norte global, e se capilariza nas estruturas materiais e também nas representações discursivas. Além disso, o racismo é definido por sua capacidade de se transformar, de se disfarçar, de reproduzir-se não apenas dentro dos sistemas de poder de controle social, mas também através de uma mobilização contínua de referências e elementos do colonialismo, que ainda definem a forma com a qual o conhecimento é concebido e produzido. Este processo de reiteração do racismo persiste porque muitas pessoas se beneficiam dele. Precisamente nós, brancos. O sistema da branquitude é um conjunto de privilégios institucionalizados e racialmente determinados, é uma forma de propriedade a ser investida em um “looping” contínuo. Perpetua benefícios materiais e imateriais através de gerações. É o princípio que estrutura hierarquicamente nossas sociedades e protege as vantagens sociais e materiais das populações brancas.
No entanto, o racismo e a supremacia branca não são características exclusivas dos EUA. É tão fácil apontar o dedo para a brutalidade do racismo norte americano. Mas, e os outros países? E a Europa? O racismo habita as fundações dos Estado-nação, os traços constitutivos de nossas culturas, da educação e da língua, é parte e parcela de nossa história. A Europa também segue matando em nome da raça. Já acreditamos em mitos e lendas ao longo do tempo, porque não tivemos que carregar o fardo que eles carregam. E agora que estamos presos nestas teias míticas, pensamos ser difícil de nos situarmos fora destas narrativas e representações. Temos a urgência de investigar esta história e nos engajarmos seriamente em processos individuais e coletivos de descontrução da estrutura epistemológica e material do racismo. Quando falamos em descolonização do conhecimento ou descolonização da mente, na maior parte do tempo tendemos a cair em definições tão genéricas e inespecíficas que acabamos por esvaziar o poder inerente a estes processos. Precisamos configurar metas bem definidas e pontuais dentro das comunidades das quais fazemos parte e dentro dos espaços que ocupamos. Precisa ser uma prática transformadora. Devemos estar constantemente envolvidos em um processo de auto descolonização, educando a nós mesmos, nos livrando das narrativas Eurocêntricas e escutando atentamente as vozes e experiências do povo negro. Precisamos começar por nossas famílias, amigos e pessoas próximas a nós. Precisamos nos articular com formas pedagógicas de antirracismo que começa nos mais íntimos e frágeis espaços. Isto também é ativismo político. Precisamos dar suporte e criar espaço para estudantes e pesquisadores negros dentro de um dos mais conservadores ambientes, a universidade. E precisamos efetivamente fazer adentrar à universidade aquilo que acontece nas ruas. A história das lutas antirracistas precisa estar presente dentro de nossas casas. Em seu livro “Ensinando a Transgredir. Educação como Prática da Liberdade” (1994), a intelectual e feminista afro-americana bell hooks retoma as práticas escolares durante a segregação no Sul. Ela analisou como aquelas escolas se tornaram laboratórios de práticas antirracistas, precisamente porque a longa história de lutas antirracistas pautou seus métodos pedagógicos. Uma pedagogia decolonial é uma postura crítica e política que rejeita as formas com as quais a educação se estabeleceu como o aparato central da reprodução de determinadas relações de poder e representações de dominação. Por conta disto, a história das lutas antirracistas é fundamental no processo de criação de práticas de in-disciplinas dentro e fora da academia. A educação enquanto compromisso político constante, engajamento sem fim para preservar a memória política de longa e rica tradição de lutas radicais, para aprender a partir delas e amplificar sua ressonância.
Não nos deixemos esquecer que aquilo que estamos testemunhando hoje é uma rebelião liderada por negros, que alcançou todos os estados do país e que está demandando o fim da guerra contra o povo negro e o fim da supremacia branca. Ela foi inteiramente organizada pelos movimentos de base locais afro-americanos, e coordenada a nível nacional. O movimento “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”) – M4BL – declarou “Semana de Ação”, de 1 a 7 de Junho, sete dias de protestos em todo o país, cada qual focado em uma demanda específica e finalmente, a queda do racismo institucional. Nossa tarefa é dar suporte, compartilhar informações e amplificar suas declarações e ações. O que virá a seguir será um desafio coletivo.
Maria Mercone é aluna de doutorado do CES no programa “Pós-colonialismos e Cidadania Global” e trabalha com escritos radicais nas prisões, história afro-americana e pedagogia anti-racista. Atualmente, ela mora em San Francisco, Califórnia, onde trabalha com o “Freedom” Archives “, uma organização comunitária sem fins lucrativos no Mission District como parte de seu projeto de doutorado.
Tradução da versão em inglês e revisão: Isabela Lemos e Patricia de Menezes Cardoso.
A versão versão original do artigo foi publicado pelo Alice News.