Foi este um dos grandes pronunciamentos do Presidente da República no seu último informe à nação. Confesso que fiquei comovido, principalmente quando em seguida foi largamente aclamado pelos deputados do seu partido, a Frelimo, e pelos ministros do seu Governo.
Num contexto em que os cidadãos precisam deslocar-se por longos quilómetros para adquirir os cuidados primários de saúde, o anúncio soou sem dúvidas como uma grande conquista. Uma boa nova para quem se preocupa com a melhoria dos indicadores de saúde.
Como alguém que discute saúde e anda em plataformas de debate sobre esta temática, notei muita euforia, que de tão contagiante, não se reservava espaço para opinião em contrário. Dificil problematizar onde há alegria.
Agora, que a euforia parece ter abrandado, existe margem para reflectir em volta desta iniciativa governamental que apesar de ter seu mérito, não deixa de ser ainda substancialista para a melhoria da saúde da população moçambicana. Não é, somente, aumentando unidades sanitárias que melhoram-se os indicadores de saúde. No nosso contexto, as unidades sanitárias são mais centros de cuidados de doenças e não necessariamente de saúde.
Infelizmente, é na mesma lógica que se estrutura o nosso Ministério da Saúde. Com melhorias relativas, apresenta-se mais como um Ministério da Doença, do que essencialmente da saúde. Pensar a saúde é pensar complexo. De acordo com o médico brasileiro, Paulo Buss , os cuidados integrais com a saúde implicam ações de promoção da saúde, prevenção de doenças e fatores de risco e, depois de instalada a doença, o tratamento adequado dos doentes. Unidades sanitárias, em grande parte, lidam, apenas com o último aspecto, reduzindo toda complexidade de produção da saúde.
Não descartando a necessidade das ações das unidades sanitárias, estas, como bem pautou o médico e antigo director da Faculdade de Medicina da UEM, João Schwalbach, no livro “Saúde e Medicina: o eu e o outro”, não contribuíram e nem contribuem eficaz e totalmente para o estabelecimento de um equilibrado estado de saúde. O que, incontornavelmente remete-nos a busca de aprofundamento de outros paradigmas de saúde. Paradigmas em que a saúde tem valor por si e em si e não pelo seu oposto, a doença. Isto só é possível enfrentando os problemas estruturais da nossa sociedade. O enfrentamento prático e não discursivo das desigualdades sociais, um comprometimento com o combate a pobreza, esforços pela melhoria dos indicadores educacionais, ampliação do acesso ao emprego, acesso a transportes de qualidade, aos espaços de lazer, a promoção da igualdade de género, cuidados com o meio ambiente, influenciando mudanças nos estilos de vida.
Senhor Presidente, falar de saúde é falar de investimentos na melhoria de qualidade de vida das pessoas. A melhoria da qualidade de vida só pode ser alcançada numa abordagem política e de políticas públicas que colocam as “pessoas em primeiro” como muito bem fundamentou o Amartya Sen.
Ter as pessoas em primeiro é garantir que estas tenham comida e comida de qualidade. Preocupa-me a corrosão do poder de compra de produtos de primeira necessidade na maior parte dos moçambicanos senhor presidente, principalmente após os elevados índices de inflação registados com o despoletar da crise resultante das denominadas dívidas ocultas. Saúde, senhor presidente, é possibilitar que em nenhuma família falte o pequeno-almoço, almoço e jantar. Seria pedir muito?
No informe a nação esteve presente a preocupação com a melhoria do estado nutricional. É positivo, pois, estamos em um país em que mais de duas crianças em cada cinco sofrem de desnutrição crónica. Essencialmente a desnutrição não é um problema hospitalar. A desnutrição combate-se possibilitando que as pessoas tenham alimento na mesa. Alimento com proteínas, energia, micro-nutrientes, acesso a água potável, educação alimentar.
Tem mais senhor Presidente! Um país que tem taxas de 13.2% de homens e mulheres de 15-49 anos, HIV positivos, não só deve jubilar por mais hospitais mas na educação para a prevenção das infecções. Deve se discutir de forma mais aberta sobre a sexualidade, sobre a reprodução e todos outros cuidados necessários para a redução das infecções.
Enquanto se trabalha na eliminação das doenças transmissíveis, existem, por outro lado, as doenças não transmissíveis que tem tendências crescentes no país. O relatório de 2018 sobre as Doenças Crónicas e Não Transmissíveis em Moçambique indica que entre 2005 e 2015 houve uma tendência crescente da prevalência de hipertensão arterial de 33% para 39% nas pessoas com idades compreendidas entre 25 e 64 anos. Para além de causas genéticas, os hábitos alimentares e estilos de vida, como o alcoolismo, o tabagismo, excessivo consumo de sal e outros aspectos evitáveis são a grande causa da hipertensão. Que medidas preventivas são tomadas? As pessoas são orientadas a ter uma dieta alimentar mais saudável?
Melhorar os indicadores de saúde deste país passa por colocar as pessoas em primeiro Senhor Presidente.
Não tem como garantir saúde num país em que as pessoas são continuamente expropriadas das suas terras, perdendo campos de cultivos e casas para dar lugar aos ditos projectos de desenvolvimento que para além de lhes tirar a relativa soberania alimentar lhes intoxica com a poluição do ar e água, destruição dos solos como acontece em Moatize, Moma e outras regiões onde estão os projectos extractivistas.
Não tem como garantir saúde, senhor presidente, num contexto em que a justiça é selectiva, estando ao lado dos poderosos politica e economicamente, vulnerabilizando os pobres que por ordem de alguém podem se ver sem habitação que levaram tempo para erguer.
Não podemos falar de saúde, senhor Presidente, em um país onde a paz só existe nos lindos discursos televisionados, sendo que há um povo em Cabo-Delgado que fica de constante vigília porque a qualquer momento pode ser vítima de um ataque armado.
Não se pode falar de saúde num país com elevados índices de casamentos prematuros que estão associados a gravidezes precoces oferecendo altos riscos de morte materno-fetal, fístula obstétrica e todas as consequências possíveis a saúde das raparigas, para além do abandono escolar.
Não se pode falar de saúde num contexto em que a educação sofre constantes desmontes. Saúde de qualidade combina com educação de qualidade. Cidadãos educados têm mais possibilidades de melhor cuidarem da sua saúde.
Senhor presidente, num contexto em que os hospitais que existem carecem de orçamento que responda as suas necessidades, falta luva, falta seringa, falta medicamentos, ruptura de reagentes laboratoriais, há profissionais desmotivados, longas filas, meses de espera para cirurgias electivas, a humanização dos serviços continua sendo uma miragem, não é só de hospital que se precisa. É, também, de condições que permitam com que o hospital não seja tão precisado.
Congratulo a ideia de um distrito, um hospital. É um caminho. Mas a saúde vai além. Pensar na saúde é priorizar os seus determinantes. É mais fácil proteger a sociedade evitando a eclosão de surtos de diarreias ou de malária que tentar curar pessoas infectadas por estas doenças. A acção preventiva é mais eficaz e barata quando comparada com acção curativa.
Nota: Agradecimentos ao Ámido Xavier, médico em potência, pelas excelentes contribuições.
Edição: Boaventura Monjane